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Opinião|Falta senso de urgência ao governo

A sociedade brasileira paga quase 8% do seu PIB só em juros. É o maior programa de concentração de renda do planeta

Por Marcelo Guterman

No último mês de julho, o Brasil voltou a apresentar um déficit nominal de dois dígitos, 10% do Produto Interno Bruto (PIB) no acumulado dos últimos 12 meses. A última vez que isso havia acontecido foi em abril de 2021, quando o déficit nominal foi de 10,3% do PIB nos 12 meses anteriores, ainda como reflexo dos gastos para mitigar a pandemia de covid-19.

Antes de continuarmos, vale esclarecer os conceitos. Déficit nominal é a soma de todos os gastos do governo, incluindo juros, menos a soma de todas as receitas do governo. Fazendo uma comparação com as finanças de uma família, o déficit nominal seria a soma de todas as despesas da família mais os juros pagos dos empréstimos tomados, menos o salário recebido. Esse déficit será acrescentado à dívida, em uma verdadeira bola de neve.

Como dizíamos, a última vez em que o déficit nominal atingiu dois dígitos foi durante a pandemia. O pior momento ocorreu em outubro de 2020, quando o déficit foi de 13,5% do PIB. Depois disso, veio recuando, até atingir a mínima de 3,7% do PIB em julho de 2022. A partir de então, o déficit nominal voltou a crescer, atingindo, como dissemos, 10,0% em julho deste ano.

Nem sempre foi assim. Entre 2003 e 2014, o déficit nominal brasileiro permaneceu na faixa de 2% a 5% do PIB. A partir do fim de 2014, com o aumento da dívida pública e dos juros, o déficit nominal aumentou até o pico de 10,7% do PIB em janeiro de 2016. Com a mudança de governo, os juros caíram e recomeçaram a ser produzidos superávits primários, o que permitiu a redução da dívida. Com isso, o déficit nominal recuou, atingindo 5,9% do PIB em fevereiro de 2020, véspera do início da pandemia.

Alguns dizem que não importa o tamanho da dívida. Afinal, a dívida não precisa ser paga, mas rolada. Além disso, se o País crescer, a dívida em relação ao PIB cairá, mesmo que a dívida cresça de maneira nominal. O problema desse raciocínio é o custo dessa dívida, refletido no déficit nominal. Desses 10% de déficit nominal, nada menos que 7,7% do PIB foram gastos em pagamento de juros. Esse montante gasto com juros era comum no início dos anos 2000, quando a taxa de juros era mais alta que a atual. No entanto, naquela época, o governo produzia superávits primários da ordem de 3% a 4% do PIB, o que compensava em parte os juros, de modo que o déficit nominal se encontrava controlado. Em julho de 2024, o governo produziu déficit primário da ordem de 2,3% do PIB nos 12 meses anteriores, o que levou ao déficit nominal de 10%.

Comparando com países com dívidas muito maiores que a brasileira, o nosso déficit nominal é bem maior. Por exemplo, a dívida do Japão é de incríveis 250% do PIB (contra 78% do PIB no caso do Brasil), mas o seu déficit nominal, em 2023, foi de 5,7% do PIB, muito menor que o brasileiro. Desse total, grande parte se deveu ao déficit primário, sendo o gasto com juros muito pequeno, pois a taxa de juros é próxima de zero. O mesmo ocorre com países como Itália, França e Estados Unidos, países com dívidas acima de 100% do PIB, mas com gastos com juros equivalentes a 3,6%, 1,7% e 3,0% do PIB, respectivamente. Países com taxas de juros semelhantes à brasileira, como México e África do Sul, pagam menos em juros, pois as suas dívidas são menores em relação ao PIB. No caso desses dois países, o gasto com juros em 2023 foi de 5,8% e 5,0% do PIB, respectivamente.

Então, o tamanho da dívida torna-se um problema quando as taxas de juros são altas. Não cabe aqui, dado o espaço limitado, discutir o porquê do nosso nível de taxa de juros. O fato é que, com esse nível, não podemos nos dar ao luxo de ter uma dívida pública do tamanho que temos. O resultado, como vimos, é a sociedade brasileira precisar se sacrificar para pagar quase 8% do seu PIB só em juros. É o maior programa de concentração de renda do planeta.

A única solução (além de um calote da dívida ou de uma surpresa inflacionária que ninguém quer) é fazer superávit primário. O problema é que não estamos nem perto de que isso aconteça. O novo arcabouço fiscal, quando foi apresentado, tinha como objetivo gerar superávit primário a partir de 2025. Esse objetivo já foi adiado para 2026. Fazendo uma conta muito grosseira, se simplesmente equilibrarmos as contas (déficit zero) a partir de 2025 (objetivo desafiador), e considerando uma taxa de juros real de 6% e um crescimento real do PIB de 3%, a dívida, e, por consequência, o gasto com juros, cresce 3% ao ano em relação ao PIB. Hoje gastamos nada menos do que um quarto da nossa carga tributária de 33% do PIB para pagar juros e, no futuro, essa proporção deve aumentar ainda mais se nada for feito.

É óbvio que esta não é uma situação sustentável. Nenhum país consegue sobreviver queimando 8% do seu PIB em juros. Mas essa não parece ser uma preocupação do governo, que atua como se tivesse todo o tempo do mundo. Não tem, se quiser continuar atuando dentro de parâmetros ortodoxos.

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ENGENHEIRO E ANALISTA FINANCEIRO, É AUTOR DO LIVRO ‘DESCOMPLICANDO O ECONOMÊS’

Opinião por Marcelo Guterman

Engenheiro e analista financeiro, é autor do livro 'Descomplicando o Economês'