Consideramos estas verdades autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a procura pela felicidade. Esse enunciado fundante da Declaração de Independência dos Estados Unidos, que tinha a pretensão de definir com clareza e honestidade o padrão moral estruturante e imutável da nascente nação, escondeu nas suas sombras a ambiguidade e a hipocrisia de uma intransponível verdade inconveniente: era falsa, não era verdadeira.
A pouca distância do Independence Hall, na Filadélfia, onde era celebrada sua assinatura, em 1776, milhões de homens, mulheres e crianças negras estavam subjugados e oprimidos pela escravidão.
Depois, nem sua luminosa Constituição, inspirada nos dogmas da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do iluminismo, foi capaz de remover tamanha agressão e desumanidade. Ao contrário, suportada no escárnio de separados mas iguais, além de abrigar a servidão dos negros numa pátria de iguais, ela própria se encarregou de instituir a segregação, autorizando e garantindo a política humilhante e imoral do apartheid racial desde os bancos escolares e assentos de ônibus até os bebedouros públicos.
Na sua pregação grandiloquente, Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz e a mais grandiosa liderança das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, denunciou o racismo, a discriminação e a política oficial e legal do apartheid americano, que transformava negros e brancos em separados e desiguais. Apontou a omissão, a conivência e a cumplicidade estatal e clarificou que o Estado, para ser justo e imparcial, deveria abandonar sua posição de indiferença e neutralidade e colocar-se numa posição ativa, criando e implementando as condições indispensáveis para garantir que ninguém continuasse sendo julgado pela cor da pele, mas, sim, pela fortaleza do seu caráter.
Lastreado nessa nova visão virtuosa e transformadora e tendo em conta a inexorabilidade de garantir a igualdade de oportunidades e a justiça da competição entre grupos com méritos desproporcionais e desequilibrados, com acerto e correção, Estado e sociedade construíram potentes e sólidas ações e medidas afirmativas de promoção da diversidade, da equidade e da inclusão tão consistentes e bem-sucedidas que, no curso de menos de 60 anos, produziram notável ascensão social, política e econômica dos negros. O presidente Barack Obama, a vice-presidente Kamala Harris, os secretários de Estado Colin Powell, Condoleezza Rice, o secretário de Defesa Lloyd Austin, os ministros da Suprema Corte Thurgood Marshall, Clarence Thomas e Ketanji Brown Jackson e os Prêmios Nobel Ralph Bunche e Toni Morrison, além do doutor King e dos milionários artistas, esportistas e empresários negros, juntos, representam a autoevidência de um retumbante sucesso.
Em seu discurso de posse, o novo presidente americano, Donald Trump, ao mesmo tempo que reconheceu e agradeceu a importância dos votos decisivos dos eleitores negros e hispânicos, minorias políticas historicamente discriminadas, afirmou que honrosamente assumia com eles o virtuoso compromisso de realizar o sonho do doutor Martin Luther King. Todavia, como numa tenebrosa volta ao passado, de maneira abominável e nefasta, nos seus primeiros atos como presidente empossado, afirmando que não enxergava cor de pele e argumentando que a diversidade desqualifica o mérito, anunciou o fim das medidas afirmativas no governo, nas universidades e nas empresas públicas.
Da mesma forma, tem intimidado e ameaçado com retaliação e punições econômicas, políticas, tarifárias, além de cortes de verbas e subsídios, empresas, veículos de comunicação, universidades, atores da sociedade civil e fornecedores dentro e fora dos Estados Unidos que descumpram ou se oponham à sua ação, brutal, injusta e indiscutivelmente ilegal. Nem mesmo o mural com a inscrição Black Lives Matter, símbolo da luta e da resistência dos negros contra a violência policial, escapou da escalada autoritária e está sendo apagado e destruído pela própria prefeita negra, Muriel Bowser, hostilizada e ameaçada de intervenção federal. Isso em Washington, a cidade onde os negros respondem pela metade da população.
Assim, desgraçadamente, Trump repete e revive a ambiguidade e a hipocrisia que marcaram o tempo de cegueira e estupidez da história americana, transformando uma verdadeira e grandiosa conquista civilizatória numa derrota planetária para todos os que compactuam com o respeito, a dignidade, a igualdade e a autonomia de todos os seres humanos.
Com propriedade e atualidade, Martin Luther King bradava com indignação e angústia que o que o preocupava não era o grito dos maus, mas o silêncio dos bons. Para que seu sonho não se transforme num terrível e permanente pesadelo e para que honremos o compromisso do nosso tempo, é imperativo que nos levantemos e derrotemos essa ação tresloucada e destrutiva deste novo celerado e tornemos a diversidade, a equidade e a inclusão grandiosas novamente.