Opinião | Fazer a diversidade grande novamente

Donald Trump repete e revive a ambiguidade e a hipocrisia que marcaram o tempo de cegueira e estupidez da história americana

Por José Vicente

Consideramos estas verdades autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a procura pela felicidade. Esse enunciado fundante da Declaração de Independência dos Estados Unidos, que tinha a pretensão de definir com clareza e honestidade o padrão moral estruturante e imutável da nascente nação, escondeu nas suas sombras a ambiguidade e a hipocrisia de uma intransponível verdade inconveniente: era falsa, não era verdadeira.

A pouca distância do Independence Hall, na Filadélfia, onde era celebrada sua assinatura, em 1776, milhões de homens, mulheres e crianças negras estavam subjugados e oprimidos pela escravidão.

Depois, nem sua luminosa Constituição, inspirada nos dogmas da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do iluminismo, foi capaz de remover tamanha agressão e desumanidade. Ao contrário, suportada no escárnio de separados mas iguais, além de abrigar a servidão dos negros numa pátria de iguais, ela própria se encarregou de instituir a segregação, autorizando e garantindo a política humilhante e imoral do apartheid racial desde os bancos escolares e assentos de ônibus até os bebedouros públicos.

Na sua pregação grandiloquente, Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz e a mais grandiosa liderança das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, denunciou o racismo, a discriminação e a política oficial e legal do apartheid americano, que transformava negros e brancos em separados e desiguais. Apontou a omissão, a conivência e a cumplicidade estatal e clarificou que o Estado, para ser justo e imparcial, deveria abandonar sua posição de indiferença e neutralidade e colocar-se numa posição ativa, criando e implementando as condições indispensáveis para garantir que ninguém continuasse sendo julgado pela cor da pele, mas, sim, pela fortaleza do seu caráter.

Lastreado nessa nova visão virtuosa e transformadora e tendo em conta a inexorabilidade de garantir a igualdade de oportunidades e a justiça da competição entre grupos com méritos desproporcionais e desequilibrados, com acerto e correção, Estado e sociedade construíram potentes e sólidas ações e medidas afirmativas de promoção da diversidade, da equidade e da inclusão tão consistentes e bem-sucedidas que, no curso de menos de 60 anos, produziram notável ascensão social, política e econômica dos negros. O presidente Barack Obama, a vice-presidente Kamala Harris, os secretários de Estado Colin Powell, Condoleezza Rice, o secretário de Defesa Lloyd Austin, os ministros da Suprema Corte Thurgood Marshall, Clarence Thomas e Ketanji Brown Jackson e os Prêmios Nobel Ralph Bunche e Toni Morrison, além do doutor King e dos milionários artistas, esportistas e empresários negros, juntos, representam a autoevidência de um retumbante sucesso.

Em seu discurso de posse, o novo presidente americano, Donald Trump, ao mesmo tempo que reconheceu e agradeceu a importância dos votos decisivos dos eleitores negros e hispânicos, minorias políticas historicamente discriminadas, afirmou que honrosamente assumia com eles o virtuoso compromisso de realizar o sonho do doutor Martin Luther King. Todavia, como numa tenebrosa volta ao passado, de maneira abominável e nefasta, nos seus primeiros atos como presidente empossado, afirmando que não enxergava cor de pele e argumentando que a diversidade desqualifica o mérito, anunciou o fim das medidas afirmativas no governo, nas universidades e nas empresas públicas.

Da mesma forma, tem intimidado e ameaçado com retaliação e punições econômicas, políticas, tarifárias, além de cortes de verbas e subsídios, empresas, veículos de comunicação, universidades, atores da sociedade civil e fornecedores dentro e fora dos Estados Unidos que descumpram ou se oponham à sua ação, brutal, injusta e indiscutivelmente ilegal. Nem mesmo o mural com a inscrição Black Lives Matter, símbolo da luta e da resistência dos negros contra a violência policial, escapou da escalada autoritária e está sendo apagado e destruído pela própria prefeita negra, Muriel Bowser, hostilizada e ameaçada de intervenção federal. Isso em Washington, a cidade onde os negros respondem pela metade da população.

Assim, desgraçadamente, Trump repete e revive a ambiguidade e a hipocrisia que marcaram o tempo de cegueira e estupidez da história americana, transformando uma verdadeira e grandiosa conquista civilizatória numa derrota planetária para todos os que compactuam com o respeito, a dignidade, a igualdade e a autonomia de todos os seres humanos.

Com propriedade e atualidade, Martin Luther King bradava com indignação e angústia que o que o preocupava não era o grito dos maus, mas o silêncio dos bons. Para que seu sonho não se transforme num terrível e permanente pesadelo e para que honremos o compromisso do nosso tempo, é imperativo que nos levantemos e derrotemos essa ação tresloucada e destrutiva deste novo celerado e tornemos a diversidade, a equidade e a inclusão grandiosas novamente.

Opinião por José Vicente

Advogado, doutor em Educação e pós-doutor pela USP, é reitor da Universidade Zumbi dos Palmares