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Opinião|Fazer cultura, fazer cidade

Avançar na discussão do patrimônio cultural, com ações inovadoras e responsáveis, é fazer o futuro de São Paulo

Por Luca Fuser

Desde 2023, a cultura e a memória de São Paulo têm sido encaradas a partir de uma nova perspectiva: a das Zonas Especiais de Preservação Cultural – Área de Proteção Cultural (Zepec-APC). O caso do Clube Banespa está pautado no Conselho Municipal de Preservação, o Conpresp, mas outros pedidos já se destacaram, como o do cinema de rua Itaú Augusta, do Santa Marina Atlético Clube e do bar Ó do Borogodó.

Um instrumento para proteger o patrimônio cultural, o foco da Zepec-APC, são atividades e locais. Elegantemente, o instrumento define uma área de proteção cultural, permitindo nela demolições e novas construções desde que se mantenham usos, práticas e valores culturais reconhecidos. É uma ferramenta diferente do tombamento, que visa a preservar o valor contido em construções existentes e permite ampla gama de usos.

Já há um conhecimento para lidar melhor com a Zepec-APC. Sabe-se que cada combinação de usos e espaços é diversa, com práticas culturais tendo trajetórias específicas, ligadas às vontades e necessidades de quem as cria, e relacionadas com as partes da urbe em que se situam. Por isso certas atividades poderiam passar para endereços próximos e seguirem importantes – uma quadra de escola de samba que mude para o outro lado da mesma rua, por exemplo, e mantenha as relações com sua comunidade.

Em outros casos, é essencial que o espaço fique onde está, mas é aceitável um rol de atividades criativas mais abrangente – como um teatro que abrigue, também, apresentações musicais. Dilemas como esses são resolvidos principalmente com uma identificação adequada do local por um corpo técnico competente, e uma condizente decisão do Conpresp.

Outro ponto de debate é a relação entre praticante e proprietário do imóvel. A Zepec-APC pode ser usada para celebrar um acordo entre essas duas partes, com os órgãos técnicos avaliando se as atividades deveriam ser preservadas. Mas, quando há uma tensão num acordo de aluguel ou venda de imóveis, se torna central discutir o enquadramento e seus efeitos.

O benefício mais imediato da Zepec-APC é facilitar construções de novos espaços, com o espaço da prática cultural sendo não computável no licenciamento da obra. Também se pode obter a transferência de potencial construtivo e isenções de alguns impostos municipais. Não é um “congelamento” de uso, já que as atividades e espaços podem ser transformadas, mas devem preservar aspectos de valor cultural para a cidade.

Os dilemas trazidos pela Zepec-APC se juntam à discussão dos deveres e direitos no campo do patrimônio cultural, que passa por enxergá-lo como um sistema com comunidades, proprietários, interesses de mercado e, obviamente, órgãos de preservação, que mediam e representam a res publica. Por isso não se pode seguir adiando o debate sobre a responsabilidade especial de donos de imóveis tombados, situados em áreas envoltórias ou enquadrados como Zepec-APC.

É fato que o Estado tem limites para definir usos de imóveis privados. O zoneamento somente delineia quais tipos de atividades podem ser realizadas em quais partes da cidade, bem como outras diretrizes genéricas para construções. Para garantir o uso do imóvel por uma pessoa, associação ou empresa específica, porém, acaba se utilizando a desapropriação, de custo mais elevado. É uma medida necessária em diversos casos, mas há situações intermediárias, ao exemplo de locais em que se deve manter um uso, mas pode mudar quem é o responsável. É como se um dono “passasse o ponto”.

Nesse sopeso de restrições e benefícios, a atual compensação provida pela Zepec-APC pode ser complementada, por exemplo, com uma mediação e apoio para atividades adequadas aos espaços, fomentando a permanência dessas práticas de valor cultural. Assim se apoiaria uma diversidade de usos na cidade, retribuindo a potência criativa de espaços que definem São Paulo.

Assim como é necessário impor restrições, devem ser articuladas saídas conjuntas para de fato alcançar uma dinâmica sustentável para a cultura e memória paulistanas. A promoção, pelo poder público, de um apoio ativo e criterioso para aqueles com poucos recursos financeiros não significa menos responsabilidade, e traria melhores resultados para a sociedade. Se alguns proprietários não estão cumprindo seu papel no cuidado de bens culturais relevantes, novas respostas são prementes.

Esse movimento passa também por uma melhor divisão de deveres coletivos. É preciso discutir lacunas de fiscalização no município, com recentes casos de demolições e construções irregulares em áreas de preservação. Ou, ainda, uma maior contribuição para cuidar do patrimônio cultural da cidade por empreendimentos valorizados por “vistas eternas” proporcionadas por áreas protegidas.

A cidade é um mosaico de usos e espaços, que todo dia se refaz. Mesmo que o ignoremos, é um processo que continuará – só que de forma desigual e aprofundando ainda mais problemas existentes. Avançar na discussão do patrimônio cultural, com ações inovadoras e responsáveis, é fazer o futuro de São Paulo.

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ANTROPÓLOGO, MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO (USP), ESPECIALISTA EM PATRIMÔNIO CULTURAL, FOI CHEFE DO NÚCLEO DE IDENTIFICAÇÃO E TOMBAMENTO DO DPH (2020-2023), QUANDO INTEGROU A COMISSÃO TÉCNICA DE ANÁLISE DA ZEPEC-APC

Opinião por Luca Fuser

Antropólogo, mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP), especialista em patrimônio cultural, foi chefe do Núcleo de Identificação e Tombamento do DPH (2020-2023), quando integrou a Comissão Técnica de Análise da Zepec-APC