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Opinião|Ficha limpa nas escolas

É indispensável analisar como a exigência – um dos pontos mais relevantes da Lei n.º 14.811/24 – vai afetar os protocolos das instituições

Por Patricia Peck

Um ato de violência que deve ser tratado com responsabilização e punição rígida dos envolvidos. Seja na forma física, verbal ou psicológica, o bullying e o cyberbullying são atitudes que geram prejuízos graves à saúde mental de crianças e adolescentes, que vão desde desinteresse e queda do desempenho escolar até comportamentos agressivos e consequências psicológicas, como estresse, ansiedade, ataques de pânico e depressão.

A criação de um perfil falso, o compartilhamento de figurinhas depreciativas, ofensas e apelidos pejorativos ou a adulteração de fotos e vídeos com o uso de deepfake são condutas que afetam profundamente as vítimas – como os recentes casos ocorridos no Brasil no final de 2023. Tanto, que iniciamos o ano com a aprovação da Lei n.º 14.811/2024, que incluiu no Código Penal os crimes de bullying e cyberbullying.

Além de complementar o que o Brasil vinha fazendo desde 2015 com a Lei n.º 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying), a nova regulamentação é uma resposta evidente para aumentar protocolos de segurança voltados à proteção da criança e do adolescente. Isso porque o novo texto determina que diversas atitudes contra menores de 18 anos sejam tratadas como crimes hediondos (inafiançáveis).

Como o Brasil é signatário da Convenção de Budapeste, é fundamental que atue para atualizar sua legislação criminal. E a responsabilização nas redes é um tema urgente e prioritário. A grande mudança é ter a especificação dos crimes de bullying e cyberbullying, que antes eram classificados com outras determinações do Código Penal, como difamação, injúria, calúnia ou ameaça.

Com essa criminalização específica, há a alteração do artigo 146-A do Código Penal: “Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais: (Incluído pela Lei n.º 14.811, de 2024)”.

Outro destaque é a responsabilização de aplicar pena em dobro, se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável. Muitos jovens são assediados ou violentados em grupos – sejam de jogos virtuais ou mesmo mídias sociais – e, por terem medo de serem cancelados, passam por uma série de bullyings sem punição. Agora, a nova legislação traz mecanismos para que o dono tenha responsabilidade com o que é divulgado. O Judiciário já vinha entendendo a responsabilidade civil sob a ótica de “quem cala consente” digitalmente.

Vivemos numa sociedade algorítmica, na qual o conteúdo chega até as pessoas. É uma conjuntura de influência, em que as informações que chegam até os usuários podem induzir condutas e comportamentos. Após a aprovação, é preciso fazer com que a lei saia do papel, por meio de campanhas educativas, de ações para educar sobre as normas, além de todo um amplo trabalho para efetivar a fiscalização e a punição.

Mudança cultural: ficha limpa nas escolas. Na minha avaliação, um dos pontos mais relevantes está no final da Lei n.º 14.811/24, nos seguintes trechos: “As instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos deverão exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus colaboradores, as quais deverão ser atualizadas a cada 6 (seis) meses.

Parágrafo único. Os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes, independentemente de recebimento de recursos públicos, deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os seus colaboradores.”

É uma nítida demonstração que estamos tratando o tema com seriedade, ao estabelecer medidas que devem gerar mudanças culturais, ao construir uma política nacional de prevenção ao abuso e à exploração da criança e do adolescente. Consiste em estabelecer o dever de cautela, prevenção e de cuidado com crianças e adolescentes.

Com todas essas alterações, é indispensável analisar de que maneira a exigência de ficha limpa dialoga com as leis de proteção de dados pessoais e como vai afetar os protocolos dessas instituições sociais e de ensino. Como será feito esse controle? De que maneira essas informações serão selecionadas e organizadas? Quais os colaboradores responsáveis por esse manejo?

A nova lei leva o assunto a ser tratado no âmbito criminal. Hoje, o que existe é uma internet de influência, de líderes de pensamento e conteúdo. Isso acarreta grandes responsabilidades. Por esse motivo há uma leitura social do Direito, ao dobrar a penalidade e gerar maior responsabilização diante destes crimes.

Não basta idealizarmos as leis, se não as compreendemos e as colocarmos em prática. O Direito precisa ser efetivo, de modo a acompanhar as modificações na sociedade, nas interações e nas maneiras de se relacionar, para que seja possível cumprir códigos morais e éticos e construir ambientes mais saudáveis e sem violência.

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ADVOGADA, PROFESSORA DE DIREITO DIGITAL DA ESPM, FOI CONSELHEIRA TITULAR DO CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (CNPD)

Opinião por Patricia Peck

Advogada, professora de Direito Digital da ESPM, foi conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD)