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Opinião|Fogo: o melhor amigo do homem

É imprescindível que nossos governantes e legisladores adotem medidas proativas, preparando o País para as próximas temporadas de seca

Por Clovis Luciano Teixeira

J. H. Rosny Aîné era o pseudônimo do romancista belga Joseph Henri Honoré Boex, precursor da ficção científica moderna ao lado de luminares como H. G. Wells e Julio Verne. Depois de alguns romances que retratavam o homem paleolítico como um “nobre selvagem”, em uma versão quase “iluminista” da pré-história, ele publicou em 1911 La Guerre du Feu. Essa obra inspirou o cineasta francês Jean-Jacques Annaud, que lançou, em 1981, o filme A Guerra do Fogo (Quest for Fire). Nessa história os humanos ainda não dominavam a linguagem, se comunicavam com gestos e grunhidos, eram nômades e recorriam à caça e à coleta para sobreviver. O fogo era mantido em “gaiolas” que preservavam as brasas. Certo dia eles se refugiaram em um pântano, onde o guardião da “gaiola” do fogo afundou na lama e a brasa se extinguiu. Desesperados, eles destacaram três membros da tribo para encontrar uma nova fonte de fogo, cuja ausência os condenaria ao frio mortal, à fome, deixando-os à mercê de bestas ferozes e de tribos rivais antropófagas. Esses três, depois de inúmeros entreveros com mamutes, tigres-dente-de-sabre, ursos gigantes e outras feras, em uma contenda com hominídeos canibais salvaram uma mulher que estava prestes a ser devorada. Essa mulher, pertencente a uma tribo mais evoluída, os fez descobrir o segredo de criar fogo, a primeira grande evolução dos humanos em direção ao domínio do planeta.

A narrativa ficcional dessa obra de Rosny Aîné retrata bem o papel transformador do fogo e sua crescente importância para a humanidade. Graças ao fogo a raça humana pôde sobreviver, evoluir e dominar todas as demais formas de vida existentes na Terra. O fogo sempre foi o maior aliado da espécie humana, seja para suprir suas necessidades de aquecimento, iluminação, cocção e defesa contra feras, seja para derreter minerais e fabricar armas, ferramentas e máquinas.

Depois de milhares de anos dependendo de chamas a céu aberto e queimando vegetais e esterco seco, eis que surge o carvão mineral no século 18 e o petróleo no século 19. Mas mesmo com toda essa evolução o fogo continuou presente em nossas vidas, dessa vez encapsulado em “caixas” de metal – caldeiras e motores a combustão interna, mas sempre fogo –, quando passou a nos proporcionar também transporte, refrigeração e eletricidade.

Ainda hoje utilizamos assaz o fogo, mesmo nas áreas urbanas, para cocção e aquecimento, seja diretamente pela combustão de carvão, lenha e gás, seja indiretamente pela queima de combustíveis fósseis que aquecem a água para banho e calefação. Segundo dados do Banco Mundial, mais de 2 bilhões de habitantes da Terra ainda utilizam lenha e carvão para cocção. E 90% da matriz energética mundial ainda depende do fogo para a queima de combustíveis, fósseis ou renováveis, segundo a International Energy Agency (IEA).

Mas o fogo, assim como o cão – o melhor amigo do homem –, tem que ser “domesticado” e “adestrado” (controlado), aceso e extinto a nosso comando, para não causar prejuízos. Desastres ambientais provocados pelo fogo descontrolado são decorrentes de práticas que remontam à origem da espécie humana.

Ao longo de nossa história o fogo sempre foi utilizado para a limpeza de terrenos (mesmo em áreas urbanas) e de pastagens e no preparo da terra para o plantio. Essa prática persiste porque é o método menos oneroso de realizar essas tarefas – e também por falta de orientação, conhecimento e acesso a tecnologias mais atuais por parte da maioria das pessoas mais humildes e dos pequenos e médios produtores rurais. Não há combustão espontânea em nosso país, salvo em raras ocasiões durante a incidência de raios sobre a vegetação seca. A imensa maioria das pessoas que ateiam fogo o faz sem refletir as consequências devastadoras que pode provocar.

É imprescindível que nossos governantes e legisladores adotem medidas proativas, preparando o País para as próximas temporadas de seca. Programas objetivos com amplas, intensas e sistemáticas campanhas educativas, preparo de brigadistas/bombeiros e aquisição de equipamentos eficazes para o combate imediato das primeiras ocorrências de fogo são urgentes. Há recursos disponíveis. O problema é como eles são gastos. Prioridades têm de ser revistas para estancar o escoamento dos bilhões que são dirigidos a emendas parlamentares não prioritárias, salários acima do teto legal, estatais improdutivas, viagens, seminários e muitos outros privilégios inaceitáveis.

Em Dubai, na COP-28 – encontro anual criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para prevenir e combater as intervenções humanas perigosas ao sistema climático mundial –, o Brasil compareceu com a maior delegação dentre todos os países. A nossa delegação era o dobro da Índia, seis vezes maior do que a da China e nove vezes maior do que a dos EUA. Foram mais de 400 servidores públicos (12 ministros), além de parlamentares e outros. E meses depois o Brasil arde em chamas!

Também não podemos continuar assistindo a soltadores de balões e bandos de grileiros et caterva queimando nossas florestas e transformando-as em pasto, sem que haja punição rigorosa e exemplar. Temos legislação suficiente e robusta para respaldar o combate aos crimes ambientais, basta que nossos magistrados a aplique com rigor. Temos o domínio das tecnologias necessárias e produzimos aqui conhecimento científico de excelência. Temos uma ministra de renome mundial como ambientalista. E não precisamos de mais autarquias para gastar recursos com atividades-meio em detrimento do combate às causas. Já temos o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), que a) tem como missão “formular e implementar políticas públicas ambientais visando a proteger o meio ambiente”; b) tem como áreas de competência “políticas de proteção e de recuperação da vegetação nativa”; c) tem uma secretaria para cuidar, exclusivamente, da “mudança do clima”; e d) tem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). E existem ainda 27 secretarias estaduais e centenas de secretarias municipais de meio ambiente. O que falta para agir?

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ENGENHEIRO, É CONSULTOR EM PROJETOS DE INFRAESTRUTURA

Opinião por Clovis Luciano Teixeira

Engenheiro, é consultor em projetos de infraestrutura