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Opinião | Foro privilegiado

O privilégio de jurisdição escancara a natureza oligárquica do nosso sistema político

Por EDVALDO FERNANDES

Para os problemas mais complexos, o senso comum sempre inventa uma solução óbvia, plausível e absurdamente equivocada, mais ou menos como afirmou o jornalista americano H. L. Mencken no livro Prejudices, publicado em 1920. Diante do maior escândalo global de corrupção, a solução óbvia é prender já todos os políticos depravados, a começar pelos que estejam no extremo oposto do espectro político.

E a lei? Quem se importa? Off with their head! (A frase “corte a sua cabeça!”, que aparece em Shakespeare e em Lewis Carrol, remete ao estado de exceção contínuo na Inglaterra pré-Revolução Gloriosa (1689), em que à revelia da lei e do processo legal, os detratores da monarquia eram condenados sumariamente à pena de decapitação.)

Prender os corruptos sem observar o Direito vigente é corrupção. E é providência inócua, porque o Brasil consegue produzir mais corruptos que cadeias. Diante da escassez de vagas, a tentação de poupar bandidos que se alinham comigo politicamente pode ser irresistível.

Max Weber subordinou a eficiência de qualquer sistema político a seu grau de legitimação social. Já a eficiência econômica seria função da racionalização dos processos produtivos. Só teriam completado a transição para a modernidade os países que experimentaram uma convergência simbiótica entre o estado da arte na política e o estado da arte na economia.

O eixo que sincroniza as engrenagens da democracia e as do capitalismo é o artifício da lei. A ordem política estruturada por norma jurídica criada pelos próprios destinatários produziria coesão social sem paralelo na História moderna.

Com a emergência do Estado de Direito, a lei conquistou a dignidade necessária para estabilizar expectativas e desembaraçar o funcionamento do contrato. A ponte entre a racionalidade política e a econômica se completou.

Essa transição para a modernidade ainda está pendente no Brasil. Aqui é desacreditada a ficção democrática de que a lei é ato da sociedade, porque a norma jurídica opera com sinal trocado, a perpetuar privilégios.

A lei genuína é em si mesma aniquiladora de vantagens subjetivas, pois só consegue operar de maneira impessoal. Qualquer conduta perturbadora da coesão social é punida com o mesmo rigor, qualquer que seja a posição de classe do agente.

Essa neutralidade da lei é absolutamente necessária ao capitalismo, avesso a qualquer retribuição desvinculada da eficiência econômica. A democracia e a economia de mercado nisso se retroalimentam.

A esta altura do argumento já deve estar clara e distinta a absoluta incompatibilidade do malsinado foro por prerrogativa de função com a democracia e o capitalismo. O privilégio de jurisdição encastelado na nossa Constituição cidadã só tem hoje uma utilidade: escancarar a natureza oligárquica do nosso sistema político, perfeitamente engrenado com nossa economia mercantilista-estamental.

O foro privilegiado não é um corpo estranho na República brasileira. Tem equivalentes funcionais por toda parte: o preconceito racial, privilégio inato do branco; o preconceito de gênero, o outro lado da moeda da hegemonia heteromasculina; incentivos creditícios e fiscais para financiadores da política, imunidade anticoncorrencial.

Se a luta do brasileiro é contra o privilégio, não é de esperar grande coisa do Judiciário, do Ministério Público e de outras castas de servidores estatais.

Talvez não seja bom negócio para o desenvolvimento institucional da República o simples rodízio de elites, a troca de oligarcas eleitos por oligarcas vitalícios. Mas por onde começar a cruzada nacional contra toda sorte de privilégios?

Muito simples: basta, como se fez na Revolução Americana (1775-1783), remover a mais patente trava à neutralidade do enforcement da lei. Os fundadores dos Estados Unidos compreenderam bem que a República implica objetividade impessoal na formulação e na aplicação da lei. Por isso estabeleceram o rule of law, que pressupõe absoluta objetividade no enforcement da lei. De que adianta produzir leis equitativas e aplicá-las escalonadas?

Por grave mal-entendido, a “revolução” que proclamou a República no Brasil assimilou da experiência americana dispositivo constitucional que extinguia todos os privilégios. Com o passar do tempo, porém, muitos desses privilégios, que não tomaram conhecimento da lei, foram repristinados. O foro privilegiado, perseguido na França, na Itália e até em Portugal, apareceu desavergonhado, à contramão da História, na Constituição cidadã de 1988.

Lei assinada pelo então presidente Fernando Collor, em 1992, estabeleceu no Brasil a jurisdição universal para crimes de improbidade. No governo Fernando Henrique, alterou-se o Código Penal para anular esse avanço, mas em decisão corajosa o Supremo Tribunal Federal impediu a manobra.

Como não existe privilégio de foro para crimes de improbidade, não faz sentido mantê-lo para crimes comuns. O máximo que se poderia admitir é que, no caso do presidente da República, o processamento de ação por crime de responsabilidade ou por crime comum no curso do mandado dependesse de autorização da Câmara dos Deputados.

O pensador francês Alexis de Tocqueville, que viajou pelos Estados Unidos na primeira metade do século 19, ficou muito bem impressionado com a jovem democracia americana. Criticou, porém, o risco de o senso comum impor ao sistema político seus pitacos óbvios, plausíveis e absurdamente equivocados.

Hoje podemos até aplaudir os excessos da Operação Lava Jato, ainda mais quando enviesados politicamente, pois para os nossos amigos, tudo; para os nossos inimigos, o rigor da lei. Amanhã, todavia, podemos concluir que essas transgressões, por motivos ululantes, postergam a reforma mais efetiva demandada pelo sistema político: a revogação pura e simples do foro privilegiado.

* EDVALDOFERNANDES É PROFESSOR DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO NO CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA (UNICEUB), ADVOGADO DE CARREIRA DO SENADO FEDERAL

Opinião por EDVALDO FERNANDES