Na sua visita a Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos, no dia 4 de fevereiro passado, o papa Francisco assinou, juntamente com o grande imã de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, uma declaração sobre a fraternidade humana, em prol da paz e da convivência entre os povos. É um documento sem precedentes nas relações entre cristianismo e islamismo, fruto do diálogo e de esforços conjuntos para prevenir ou superar conflitos de fundo religioso e toda forma de manipulação da religião para justificar atos de terrorismo e agressões contra as pessoas.
A ocasião escolhida para o acontecimento não foi casual. Em 2019 se recordam os 800 anos do encontro de São Francisco de Assis com o sultão al-Malik al-Kamil. Era o tempo das cruzadas, mediante as quais governos ocidentais, apoiados pelo papado, queriam libertar, com a força militar, a Terra Santa da dominação muçulmana. O próprio São Francisco, na sua juventude, havia sonhado com glórias militares nas cruzadas.
Depois de sua conversão a Deus e do abandono das vaidades e dos sonhos mundanos, São Francisco foi procurar os “irmãos muçulmanos”, como “um crente sedento de paz”. No encontro com o sultão, ele conseguiu muito mais do que poderia ter conquistado com exércitos e armas. Não é por nada que, desde aqueles tempos, os franciscanos puderam estabelecer-se na Terra Santa para cuidar dos lugares ligados à fé cristã e acolher ali os peregrinos, como fazem ainda hoje.
Passados oito séculos, outro Francisco, sedento de paz, foi ao encontro dos muçulmanos e, juntamente com uma autoridade islâmica muito representativa, emitiu uma declaração destinada a marcar a História. O documento não trata da autodefesa de ambas as religiões contra eventuais ataques ou problemas enfrentados, mas tem a intenção de afirmar o entendimento comum das duas religiões sobre seu serviço à paz na humanidade inteira.
De maneira semelhante, em 1986, num momento de grave tensão entre as potências da guerra fria e diante do risco de guerra nuclear, o papa São João Paulo II promoveu em Assis, na Itália, um encontro de líderes de diversas religiões para ressaltar que elas devem envolver-se na promoção da paz e da convivência fraterna entre os povos. Também o papa Bento XVI, em setembro de 2006, declarou que, “fiéis aos ensinamentos das suas próprias tradições religiosas, cristãos e muçulmanos devem aprender a trabalhar juntos para evitar qualquer forma de intolerância e se opor a todas as formas de violência”.
A declaração de Abu Dabi convida todas as pessoas que têm fé em Deus e na fraternidade humana a se unir e trabalhar em conjunto, no respeito mútuo, partindo da compreensão de que todos os seres humanos são irmãos. Destaca a adoção da cultura do diálogo como caminho, da colaboração comum como conduta e do conhecimento recíproco como método e critério.
Um apelo especial é feito aos líderes religiosos e das nações do mundo inteiro para que se empenhem seriamente na difusão da tolerância e da convivência pacífica, para impedir o derramamento de sangue inocente e para acabar com as guerras e os demais conflitos.
Um apelo especial é, enfim, dirigido aos intelectuais, homens da cultura, filósofos, líderes religiosos, artistas e operadores das mídias de todo o mundo: é necessário redescobrir os valores da paz, da justiça, do bem, da beleza, da fraternidade humana.
O reconhecimento desses valores deve ser entendido como âncora de salvação para todos. É preciso sacudir a consciência anestesiada, superar o afastamento dos valores religiosos, a deterioração da ética e as filosofias materialistas, que divinizam o homem e subvertem a ordem dos valores.
Condenam-se a intolerância e o extremismo religioso e nacionalista; são denunciadas “as graves crises políticas, a injustiça e a falta de uma distribuição equitativa dos recursos naturais, dos quais se beneficia apenas uma minoria de ricos, em detrimento da maioria dos povos da terra”. O texto expressa perplexidade diante do “inaceitável silêncio internacional” em face desse estado de injustiça, que causa sofrimentos e mata de fome milhões de pessoas por causa da pobreza.
Condena-se claramente a instrumentalização das religiões para incitar o ódio, a violência, o extremismo cego. Há um forte apelo para que não se use o nome de Deus “para justificar atos de homicídio, exílio, terrorismo e opressão”, pois “Deus não criou os homens para serem assassinados, ou para lutarem uns contra os outros, nem para serem humilhados e torturados”.
Na sua parte mais propositiva, a declaração reafirma o papel essencial da família, “núcleo fundamental da sociedade e da humanidade”, o sentido religioso da vida, a educação moral, a defesa da vida humana e a condenação de todas as práticas que a ameaçam e agridem. Reafirma ainda que os verdadeiros ensinamentos das religiões “convidam a permanecer ancorados nos valores da paz e da fraternidade humana”.
Da mesma forma, pede o respeito ao pluralismo, à liberdade em geral e à liberdade religiosa, em particular. Condena a imposição de uma religião, cultura ou estilo de civilização e preconiza o diálogo entre as religiões, a cultura da tolerância e a convivência respeitosa entre pessoas e povos de convicções diferentes.
A declaração de Abu Dabi, partindo da consciência de que a humanidade é uma única grande família de irmãos, em que a sorte de uns está ligada à de todos, é uma luz de esperança nestes tempos obscuros. Ela contrasta com muros levantados nas fronteiras e com movimentos que incitam à intolerância e ao ódio. É um convite à sensatez, ao repúdio da violência aberrante e do extremismo cego. É um testemunho da grandeza da fé em Deus, que une corações divididos e eleva a alma humana.
* DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO