A saúde suplementar é um bem fundamental que deve ser preservado, mas há necessidade de que todos compreendam o real papel dos planos de saúde. Trata-se de um setor que atua de forma coletiva, em que cada beneficiário contribui com um valor mensal para gerar receita e cobrir os procedimentos médico-hospitalares de todos. Tecnicamente, é o que chamamos de mutualismo, possibilitando a contratação de serviços que seriam difíceis de obter individualmente, como é o caso dos benefícios oferecidos pelos planos privados. Essa cadeia envolve muitas pessoas, com 50,8 milhões de beneficiários em agosto de 2023, o maior registro da história desde que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) passou a acompanhar mensalmente.
Com toda sua complexidade, este setor vem enfrentando diversos desafios, com destaque para as fraudes que se instalaram na saúde suplementar há décadas e acontecem até hoje em todas as etapas do processo. Práticas irregulares estão presentes desde a contratação dos planos ou dos seguros-saúde até o faturamento e a cobrança de procedimentos não efetuados. Em muitos casos, os recibos para reembolso são multiplicados ou superfaturados, ajudando a aumentar a sinistralidade e prejudicando tanto as operadoras quanto os próprios pacientes.
Essas fraudes se sofisticaram e se diversificaram na mesma velocidade da digitalização dos processos, aproveitando-se da facilidade do ambiente digital e do alcance das redes sociais. No cenário atual, verdadeiras quadrilhas promovem intenso marketing nas redes sociais, produzindo esquemas fraudulentos e visando à apropriação dos dados pessoais dos beneficiários, especialmente do login e da senha de acesso aos sites e aplicativos das operadoras de saúde.
Os esquemas têm como foco burlar os mecanismos de reembolso e perpetrar ações criminosas que acabam por impactar os custos dos tratamentos de saúde, posteriormente repassados de maneira indireta ao consumidor. Muitas vezes, os fraudadores induzem os beneficiários a pensar que estão contratando um prestador credenciado ou referenciado e aproveitam-se da sua situação de fragilidade e desconhecimento, oferecendo auxílio ou facilitação, incluindo a solicitação de reembolsos de procedimentos sem cobertura, a exemplo das intervenções estéticas.
Neste cenário, o paciente ou responsável acaba por informar os seus dados, ou permitir o seu uso, expondo-se a crimes ou a práticas ilícitas, como divisão de recibos, cobrança de tratamentos não ocorridos, acréscimo e multiplicação de códigos de procedimentos, além da geração de notas fiscais e outros pagamentos falsos. Com essas ações, as quadrilhas aumentam artificialmente seus ganhos, prejudicando a coletividade e pondo em xeque o princípio da coletividade e a sustentabilidade do sistema de saúde.
O mecanismo de reembolso se refere sempre a uma despesa médica assistencial, de forma que o esperado é que a variação do valor da indenização via reembolso acompanhe a variação das despesas assistenciais gerais. Entretanto, no período entre 2019 e 2022, o volume de reembolsos de procedimentos médicos saltou 90%, para R$ 11,4 bilhões. É um crescimento bem superior ao dos procedimentos cobertos pelas operadoras de planos de saúde, cuja oscilação foi de 19,5% no mesmo período, representando uma diferença de R$ 7,1 bilhões, gerada em grande parte por causa de fraudes e ganhos ilícitos.
As condutas fraudulentas também envolvem a utilização de instituições financeiras fictícias, a abertura de contas digitais em nome do paciente e até a modificação de conta corrente para reembolso, tudo sem consentimento ou conhecimento do beneficiário. Essas irregularidades são a base para uma série de delitos, a exemplo de falsidade ideológica, atividade financeira indevida, infração nas relações de consumo, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. Além de outros mecanismos mais complexos e sofisticados, como abertura de falsas empresas e pagamentos de planos de saúde pelos próprios prestadores de serviços médicos, com o único propósito de obter superfaturamento por meio do reembolso.
O setor de saúde tem atuado para esclarecer a sociedade sobre esses delitos. As entidades representativas estão promovendo campanhas como a #TodosPorTodos com Muita Saúde e #SaúdeSemFraude para informar a população sobre a necessidade de combater essas práticas. Afinal, todos perdem com as falcatruas.
Já se tornou urgente empreendermos esforços em ações coordenadas, planejadas e sinérgicas para desenvolver mecanismos que impeçam e penalizem as condutas fraudulentas no setor de saúde no Brasil.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE E SUPERINTENDENTE MÉDICO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PLANOS DE SAÚDE (ABRAMGE)