Depois de quatro anos marcados pela facilitação desmedida do acesso às armas de fogo por civis, era evidente que o novo governo precisaria dar um primeiro passo fundamental: revogar os aspectos mais danosos dos decretos e das portarias expedidos entre 2019 e 2022 – muitos inconstitucionais – que desmontaram a política brasileira de controle de armas. Essa ação foi lançada no dia 1.º de janeiro, com o Decreto 11.366.
Após provocação da Advocacia Geral da União (AGU), o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), proferiu, no dia 16 de fevereiro passado, importante decisão declarando a constitucionalidade do decreto, que tem mérito triplo: evita o caos jurídico, que foi marca da política armamentista do governo Bolsonaro; responde de forma antecipada às ações judiciais e questionamentos já em curso do campo que defende maior acesso às armas; e deixa espaço para o desenho de uma política que permita ao governo e às forças de segurança retomarem o controle e a fiscalização sobre as armas e munições.
O desafio é grande. Conforme levantamento conjunto dos Institutos Sou da Paz e Igarapé, o Brasil se aproximou dos 3 milhões de armas em acervos de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), cidadãos comuns, servidores civis e armas particulares de militares e policiais militares. Isso traz riscos à segurança pública e à democracia no Brasil.
Tamanha explosão do número de armas nas mãos de CACs se deu com a permissão para transitarem com armas municiadas em qualquer trajeto e horário, além da liberação de quantidades irracionais de armas, com atiradores iniciantes podendo comprar até 30 fuzis. Essas brechas baratearam e facilitaram a migração de armas para o crime organizado. Além disso, a liberação de armas mais potentes que as da polícia para um grupo parcialmente radicalizado ampliou a intensidade da violência política, como a do ex-deputado Roberto Jefferson, que, antes das eleições, emboscou e quase matou três policiais federais com um fuzil que conseguiu registrar no Exército (mesmo em prisão domiciliar). Em outro caso, na véspera do Natal, um CAC do acampamento golpista no QG do Exército, em Brasília, tentou explodir um caminhão de combustível. Ele foi preso com várias armas que pretendia distribuir para insuflar um golpe de Estado e manter Bolsonaro no poder.
Mais recentemente, houve a chacina cometida num bar de Sinop, em Mato Grosso, onde dois homens armados mataram sete pessoas por uma disputa de bilhar. Ao menos um deles era CAC, com antecedente por violência doméstica. Esse cidadão não preenchia os requisitos para registrar legalmente armas, o que mais uma vez demonstra a precariedade da checagem documental feita pelo Exército brasileiro.
O decreto de janeiro veda a aquisição de armas e munições de uso restrito aos CACs, restringe o limite de compra de armas e suspende temporariamente novos registros de CACs e clubes de tiro. Além disso, institui um grupo de trabalho que terá de analisar o emaranhado normativo caótico deixado pelo governo anterior e apresentar nova regulamentação à Lei 10.826/03, que dispõe, entre outras coisas, sobre registro, posse e porte de armas de fogo.
O decreto estabelece, na prática, um “freio de arrumação” necessário, para usar a feliz expressão de Gilmar Mendes em sua decisão, que vai assegurar mais tranquilidade no processo de recadastramento de armas liderado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Com um inventário das armas no País, precisaremos fortalecer os departamentos na esfera federal e apoiar a criação, pelos governos estaduais, de delegacias de combate ao tráfico e comércio ilícito de armas. A combinação de uma boa regulação do mercado legal com a disrupção de esquemas ilícitos é a estratégia de que o Brasil precisa para trazer mais segurança à sua população.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA, SOCIÓLOGA, MESTRE EM FILOSOFIA DO DIREITO E DIRETORA-EXECUTIVA DO INSTITUTO SOU DA PAZ; E ADVOGADO, MESTRE EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GERENTE DE PROJETOS DO INSTITUTO SOU DA PAZ