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Opinião | Freud e a IA: um divã para o apocalipse

Insuflada com bons algoritmos, uma máquina seria capaz de descrever traumas, desejos e sonhos de forma mais plausível que um analfabeto que sobrevive abaixo da linha da pobreza

Por Augusto Simões

Conhecido como o “pai da computação”, o intelectual e matemático britânico Alan Turing contribuiu de maneira muito importante para a chamada lógica matemática. Sendo composta por axiomas e afirmações, a matemática é completa (toda afirmação verdadeira pode ser provada), consistente (sem contradições) e decisória (isto é, existe um algoritmo que pode determinar ou decidir se uma afirmação é consequência de seus axiomas).

Quando os primeiros computadores começaram a funcionar, muitos já se perguntavam se eles poderiam pensar como os seres humanos. Pensando nisso, Turing concebeu um teste em que uma pessoa, um computador e um interrogador humano (juiz) são mantidos em salas separadas e só poderiam se comunicar por texto impresso. A máquina e a pessoa manterão uma conversação escrita entre si. O juiz deverá analisar o conteúdo e tentar distinguir qual é a máquina e qual é o ser humano. A pergunta que Turing se fazia era: poderia a máquina imitar o pensamento humano e confundir o juiz?

Atualmente, os computadores conseguem processar uma grande base de dados e já conseguem escrever textos quase humanos, o que para alguns seria suficiente para enganar e confundir os julgadores de testes de Turing. No entanto, essa não seria a primeira vez na humanidade em que atribuiríamos o status de “coisa” a um humano (rebaixando-o à condição de máquina) e o status de “pessoa” a um construto (elevando-o à condição de humano). Na escravidão, rebaixamos juridicamente muitos “humanos” ao status de “coisas”, que poderiam ser comprados e vendidos como animais, e na ascensão das grandes corporações, vimos as empresas sendo elevadas de “coisas” a “pessoas (jurídicas)”, passíveis de terem seus direitos e interesses protegidos.

Ou seja, o Teste de Turing, datado do século 20, já nasceu obsoleto, porque há séculos nos acostumamos a tratar pessoas como coisas e a tratar coisas como pessoas. No lugar da antiga (seria mesmo “antiga”?) escravidão, a pobreza e a miséria atualmente se incumbem de metamorfosear os miseráveis em lixos descartáveis. A situação é tão catastrófica que nem mesmo os catadores de materiais recicláveis conseguem ter o seu óbvio protagonismo devidamente reconhecido, pois as associações de industriais, fabricantes, distribuidores e comerciantes insistem em avocar para si os ganhos financeiros e não financeiros com a ainda frágil economia circular.

A economia circular só pode operar na lógica da “adicionalidade” econômica. Considera-se imperativo que ela seja “economicamente viável”: se os materiais reciclados encarecerem os produtos finais, esse ônus obviamente seria suportado pelo consumidor e/ou subsidiado pelo governo. Qualquer lógica diferente do império dessa corrente principal da economia neoliberal não seria capturada pela lógica computacional da mais rústica inteligência artificial (IA) e seria tachada de assistencialista, “esquerdista”, ingênua e demagoga. Esse pensamento econômico não tem nada de humano: somos todos juízes fracassados por termos sido reprovados pela microeconomia de Turing.

Coisas não sonham, não desejam, não têm fantasias. Imaginem um psicanalista no papel de juiz do Teste de Turing: a ele seria indagado se o seu divã está, em determinado momento, ocupado por um humano ou uma máquina. Insuflada com bons e apropriados algoritmos, uma máquina seria capaz de descrever traumas, desejos, sonhos e aspirações de forma mais plausível que um analfabeto que sobrevive, com raspas e restos, abaixo da linha da pobreza. Este último há tempos perdeu a capacidade de sonhar e de expressar sentimentos humanos, os quais podem ser quase imitados por computadores.

Em entrevista dada em setembro ao programa Provoca, da TV Cultura, o filósofo e psicanalista Vladimir Safatle disse ao entrevistador Marcelo Tas que há duas dimensões em que a máquina não consegue imitar o humano: primeira, na sua capacidade de autodestruição; segunda, em seu inconsciente. Se é discutível que máquinas possam ou não mimetizar sentimentos, é indiscutível que máquinas não possuem inconsciente. As pulsões de Eros (vida) e de Thanatos (morte), que estruturam a nossa existência e que modelam os nossos desejos, nossos afetos, nossos pensamentos e nossas ações, não são inscritas como DNA em chips de computadores, nem programáveis por meio de algoritmos. As pulsões de morte humanas, demasiadamente humanas, apenas ecoam nos algoritmos da IA e reverberam como arautos do apocalipse rebatizado de mudanças climáticas.

Dinheiro é como esterco: se deixar amontoado, ele fede. Mas se espalhar ele se transmuta em adubo e a vida volta a florescer. A distribuição de renda tem o poder de criar condições de possibilidade de resgatar nos pobres e miseráveis a capacidade de sonhar, de desejar e de fantasiar. Em termos axiomáticos, esse é o “ponto de partida” e a “linha de chegada”, cujo meio ou caminho deve ser pavimentado pela verdadeira ciência (humana) econômica e pela verdadeiramente “humanizada” inteligência artificial.

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ADVOGADO, É DOUTORANDO EM ECONOMIA E MERCADO DE CAPITAIS PELA UNESP

Opinião por Augusto Simões

Advogado, é doutorando em Economia e Mercado de Capitais pela Unesp