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Opinião|Gás natural: o dobro pela metade do preço

Ao contratar modelo de custos elevados, o setor de gás permanece estagnado, perde competitividade e se condena a uma competição que não vencerá

Por Paulo Pedrosa

Limitar o aquecimento do planeta a 1,5°C já parece impossível. Dois graus Celsius e meio já estariam contratados. Com isso, ficam mais acalorados também os debates da energia, como sobre o papel do gás natural, ou do gás fóssil, santificado por uns e demonizado por outros.

Como o debate não acontece, as situações vão se cristalizando e os interesses se impõem de forma descoordenada e incoerente, num cenário que pode terminar sendo o pior possível para todos, em que o País vai investir em uma infraestrutura condenada à ociosidade pela pressão da competitividade das renováveis e pelas próprias forças de mercado.

Faz sentido para o Brasil usar o gás natural na descarbonização da sua indústria até sob o ponto de vista planetário da redução de emissões. Pragmaticamente, aí está uma grande oportunidade, por exemplo, na substituição do carvão importado na indústria siderúrgica, reduzindo pela metade o CO₂ produzido, o que, combinado com nossa energia elétrica renovável, faria do País um grande produtor de aço verde de baixa emissão, atendendo ao mercado global.

Oportunidades como essa estão também nos fertilizantes, na cerâmica, no cimento e no vidro, entre outros. Mas existe uma curta janela de oportunidade para o gás natural. Precisa haver clareza em relação à sua oferta e custo. E rapidez enquanto novas soluções renováveis ganham competitividade e escala para substituí-lo, como o biogás e o hidrogênio. Enquanto isso, para que o País possa atingir os compromissos climáticos assumidos no médio prazo, é preciso uma política transversal coordenada e coerente, costurando aspectos energéticos, climáticos e de desenvolvimento industrial, definindo o papel do gás nessa transição entre os energéticos e na descarbonização.

O Ministério de Minas e Energia está pautando o problema nos seus diversos ângulos. Foi corajosa a posição do ministro Alexandre Silveira sobre as elevadas remunerações da distribuição de gás natural, que representa quase 20% do custo final do energético. Da mesma forma, foram positivas as medidas recentes em relação ao acesso às instalações de escoamento, tratamento e transporte, à diversidade do mercado e à comercialização de gás pela PPSA.

Para reduzir o custo final de gás, cada elemento de sua cadeia precisa e deve trazer sua contribuição: a produção da molécula, o escoamento, o processamento, o transporte, a distribuição e a comercialização.

Para começar, um olhar sobre a distribuição, como apontou o ministro, evidencia que a regulação tem transformado as distribuidoras em ineficientes enterradoras de tubos e promovido a deseconomia de escala no segmento. As revisões tarifárias de algumas delas mostram esse contrassenso, ou seja, quanto mais o setor cresce, mais ele fica caro por unidade de gás entregue.

Isso está evidente no caso do Rio Grande do Sul, no qual a distribuidora aumentou em 30% a quantidade de ativos, subindo de R$ 300 milhões para R$ 400 milhões a base a ser remunerada, para agregar menos de 1,5% do volume de gás a ser vendido, o que pode levar a um aumento tarifário da ordem de 70% para os consumidores.

Isso decorre de um modelo em que os consumidores aportam nas tarifas os recursos para os investimentos que ainda serão feitos, de uma forma pré-paga, ao contrário, por exemplo, do setor elétrico, em que os investimentos são feitos com recursos do concessionário e remunerados depois. Obedecendo a lógica pré-paga, a remuneração do capital deveria tender a zero, já que o investimento é realizado com o capital do cliente. E, enquanto na energia elétrica se aplica uma remuneração da ordem de 7% sobre os investimentos, no setor de gás natural, na maioria dos casos, essa remuneração chega a 20% depois do pagamento de impostos e incide não apenas sobre os investimentos, mas também sobre os custos das empresas. Como resultado, o custo operacional representa, na maioria dos casos, mais de 50% da margem média de distribuição.

Os incentivos perversos dessa regulação terminam prejudicando as próprias distribuidoras porque, ao elevar os custos do gás, fazem dele um combustível não competitivo, principalmente por afastar desse mercado a grande indústria. Compromete, ainda, a gigantesca oportunidade de desenvolvimento do gás natural para descarbonizar a produção nacional.

E esse fenômeno é perverso para todos os consumidores, pois na medida em que o consumo industrial deixa a distribuidora, todo aquele sistema vai precisar ser remunerado pelos consumidores remanescentes, repetindo o setor elétrico no que ficou conhecido como “espiral da morte”, em que a saída de um consumidor agrava o problema para os demais e estimula novos agentes a abandonarem a rede.

É o paradoxo de um setor que combina a perda de sua melhor base de consumidores – os industriais – com altas remunerações, tarifas crescentes e, em alguns casos, retorno aos acionistas absolutamente incompatíveis com o serviço exercido em regime de serviço público e monopólio natural concedido.

A falta de competitividade do produto final acumulada ao longo da cadeia do gás acaba por estimular o segmento para buscar sua expansão com soluções no tapetão, como aquelas associadas à imposição da contratação de termoelétricas na base e caríssimas, que contaminam o setor elétrico com as distorções do gás e contribuem para carbonizar a nossa eletricidade quando deveríamos descarbonizar a indústria.

Ao contratar esse modelo de custos elevados, o setor de gás permanece estagnado, perde competitividade e se condena a uma competição que não vencerá com a biomassa, o carro e o fogão elétricos e com a eletrificação da energia nas indústrias, nos comércios e nas residências, portanto um caminho de um voo da galinha.

É importante que nós do setor de gás aceitemos o desafio para empreender esse debate, alcançando todas as etapas da cadeia do gás. Isso precisa ser feito, é claro, respeitando contratos e leis, renegociando o que for possível, em um modelo em que todos ganharemos mais, inclusive o setor de distribuição, que passará a trabalhar em bases muito maiores do que as atuais. Assim, poderemos ter o dobro do gás, pela metade do preço.

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É PRESIDENTE DA ABRACE ENERGIA, ASSOCIAÇÃO QUE REPRESENTA OS GRANDES CONSUMIDORES DE ENERGIA ELÉTRICA E GÁS NATURAL

Opinião por Paulo Pedrosa

É presidente da Abrace Energia, associação que representa os grandes consumidores de energia elétrica e gás natural