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Opinião | Há limites na defesa da democracia?

É difícil de se opor à concessão pragmática de que para defender a democracia o Estado se pode ‘exceder’. Tão difícil ou mais é não suspeitar do perigo dessa concessão

Por Raquel Scalcon

Ao longo dos últimos anos, o Brasil vivenciou contínuos atos antidemocráticos, cujo ápice ocorreu no dia 8 de janeiro passado. Graves condutas, absolutamente reprováveis, que demandaram reação firme e urgente das instituições brasileiras, com destaque para o Poder Judiciário. No amplo espectro de respostas institucionais possíveis, recorreu-se, como de costume, ao sistema de justiça criminal: abertura de variados inquéritos, realização de milhares de prisões em flagrante e inúmeras prisões preventivas, determinações de buscas e apreensões, oferecimento de denúncias criminais, etc.

Tais medidas, altamente noticiadas, passaram a ser objeto de intenso debate público e subsequente escrutínio. Há quem tenha defendido, com convicção, que houve claro excesso de membros do Poder Judiciário nas medidas adotadas até aqui. Já outros, em resposta àqueles, indagaram, em tom de perplexidade: mas, afinal, é possível falar em “excessos” quando está em questão a defesa da própria democracia?

Como se vê, a discussão é extremamente complexa, e é impossível exauri-la neste espaço. Ainda assim, avalio aqui alguns argumentos que estão em confronto, buscando jogar luz sobre os principais pontos em tensão. Para isso, darei um passo atrás, deslocando, de início, o centro de gravidade da discussão dos atos democráticos para o funcionamento, em si, do sistema de justiça criminal brasileiro.

Neste preciso âmbito, o “estado de exceção” (Agamben), isto é, uma espécie de coma induzido de direitos e garantias fundamentais, parece ser algo que está, em maior ou menor intensidade, sempre latente. À espreita. É um risco contínuo que circunda e acompanha a aplicação concreta da punição pelo Estado. Cidadãos brasileiros socialmente mais vulneráveis experienciam “na pele”, desde sempre, o que a teoria aqui tenta explicar. Portanto, a crítica quanto ao possível excesso punitivo estatal não é algo novo em nossa realidade, muito ao contrário.

Feita essa ressalva inicial, voltemos aos atos antidemocráticos e à sua repressão pela via do sistema de justiça criminal. Já parece suficientemente claro que tais condutas buscaram a própria erosão das instituições democráticas, a inadmissível supressão de direitos e de garantias constitucionais. Nesse contexto, muitos defendem que, diante de tamanho extremismo, não é possível responder integralmente dentro das quatro linhas da lei e da Constituição. Metaforicamente, as regras do jogo somente poderiam ser aplicadas quando todos os jogadores, de fato, compartilhem um mínimo ético, respeitem o fair play. Não seria este o caso de condutas antidemocráticas. Haveria, segundo dizem, um paradoxo no fiat iustitia, et pereat mundus (faça-se justiça, ainda que o mundo pereça), máxima dos clássicos. Seria como dizer “respeite-se a Constituição, ainda que acabe a democracia”. Pouco sentido haveria em preservar a Constituição à custa da democracia, pois tudo no fim ruiria junto, não?

O que temos, então? Como ponto de partida, é preciso discutir se a democracia esteve em risco efetivamente. Se os atos do 8 de janeiro de 2023 tinham aptidão real para erodi-la ou não. Neste ponto, embora haja algum grau de divergência, majoritariamente se afirma que o perigo era, sim, tão intenso quanto verdadeiro. Se estivermos de acordo quanto a isso, então haveremos de discutir, na sequência, se as medidas de natureza penal tomadas para o seu enfrentamento estavam, milímetro a milímetro, dentro das regras constitucionais e legais.

Aqui, no entanto, as divergências são potencializadas, também porque as regras processuais penais que preveem algumas dessas medidas recorrem a expressões de difícil concretização, como, por exemplo, “garantia da ordem pública”, “fundadas razões”, “assegurar a aplicação da lei penal”, etc. Ora, como identificar o excesso, se o limite tampouco é claramente demarcado? Se regra e exceção perigosamente se imbricam, dando margem ao arbítrio? Ainda assim, caso reconhecidos desvios na sua aplicação, o próximo passo será discutir se o risco democrático – e em qual grau – admite tomadas de decisão anômalas. E, após, avaliar se este ou aquele excesso eram de fato essenciais à preservação da democracia, ou se eram ilegítimos mesmo à luz desse elevado nível de pragmatismo.

Sem dúvida, é difícil de se opor à concessão pragmática de que, em defesa da democracia e diante de atos tão graves, que descolaram do sistema jurídico e político posto, nem sempre deverá o Estado responder com respeito a regras jurídicas cuja incidência pressupõe situação de “normalidade democrática”. Contudo, tão difícil ou até mais é não suspeitar do insidioso perigo também inerente a essa concessão pragmática. Estando já controlado o alegado risco democrático, a continuidade de qualquer “excesso” no âmbito do sistema de justiça criminal não tem legitimidade sob nenhum fundamento (se é que algum dia teve), devendo cessar imediatamente.

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ADVOGADA CRIMINALISTA, É PROFESSORA DA FGV DIREITO-SP

Opinião por Raquel Scalcon