Em recente manifestação, o bilionário Mark Zuckerberg, dono da Meta (leia-se Facebook e Instagram), afirmou que seguirá o modelo norte-americano e cancelará seus protocolos de checagem de fatos, o substituindo por “Notas da Comunidade”, mecanismo similar ao utilizado pelo X (antigo Twitter) do igualmente bilionário Elon Musk.
Jürgen Habermas, no livro Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública e a Política Deliberativa, se dedica ao assunto. Essa mídia digital não é neutra ou isenta de opiniões, mas formada pelo empresariado, pelo mercado, pelos horizontes lucrativos, pela publicidade algorítmica. Ela não é como a antiga mídia (que também se condensou em uma estética digital), porém, no caso dessa, há responsabilização pela criação de conteúdos e propagandas. Para Habermas, a mídia é fundamental para a construção de opiniões divergentes que possam competir no cenário democrático em que estão presentes representantes da sociedade, políticos ou não, que saibam reagir aos diferentes argumentos e se adaptar aos desafios que surgirem.
O sistema de mídia tem importância decisiva para a esfera política desempenhar seu papel de gerar opiniões públicas concorrentes que atendam aos critérios da política deliberativa. Pois a qualidade das deliberações depende de elas satisfazerem certos requisitos funcionais no processo de seu surgimento. As opiniões públicas só são relevantes se políticos, representantes dos interesses e das agências de relações públicas dos sistemas funcionais da sociedade e atores da sociedade civil forem suficientemente responsivos para descobrir os problemas que precisam ser regulados e, em seguida, fornecerem a solução correta e adequada. A internet alterou profundamente a dimensão espacial-temporal de comunicação e essas mídias digitais possibilitam o protagonismo de seus usuários, independentes e iguais, não se responsabilizando pelo que eles dizem ou escrevem.
Conforme Habermas, estabelecer como mediadores “não responsáveis” novas conexões na rede global mundial e, com a potencialização contingente e a aceleração exponencial de contatos, começar e fortalecer discursos imprevisíveis em termos de conteúdo, altera significativamente o caráter da comunicação pública, sendo que essas redes de comunicação sem fronteiras, formadas, aleatoriamente ou não, em torno de certos temas ou personagens, podem se espraiar infinitamente, condensando-se, inclusive, em outros circuitos comunicativos isolados ou não. Assim, circula pelas redes um campo de comunicação muito amplo, que vai do compartilhamento de teorias políticas à pretensão lucrativa. Eventualmente, manifestações podem contrariar o ordenamento jurídico de determinado país, ou esbarrar em deliberações estabelecidas em convenções internacionais, jurídicas, políticas ou econômicas. O negacionismo científico pode atentar contra as estruturas de saúde de um país, por exemplo. Um discurso político pode enaltecer uma ditadura ou o nazismo. Enfim, diferentes situações que podem comprometer a ordem normativa ou violar direitos humanos.
Em um cenário normal, tais discursos podem ser enfrentados por uma ação judicial. Ocorre que a velocidade da internet e sua instantaneidade são realidades incompatíveis com as regulações do Judiciário, mesmo em processos coletivos, como ações civis públicas ou ações populares. O acesso e o espalhamento de comunicações violadoras do ordenamento jurídico são desproporcionais ao tempo processual normal. Por isso a regulação das redes, para evitar a proliferação desse fenômeno, deve ser pensada como mecanismo de contenção ou bloqueio do problema. Nos deparamos então, nas democracias atuais, com uma possibilidade de afetação de outro direito humano igualmente importante: a liberdade de expressão. Mas essa, como qualquer outra garantia fundamental, não é absoluta, possui limites estabelecidos dentro do próprio sistema normativo interno ou através dos pactos internacionais.
Dessa forma, é possível compor uma série de restrições ao exercício dessa liberdade. Podemos estabelecer regras em que, por exemplo, manifestações de ordem racista, machista, homofóbica, antidemocrática, negacionista sejam objeto de restrições. Mas na ausência, ou na incompletude, dessas, cabe ao Poder Legislativo deliberar sobre esse regramento. Caso contrário, o Judiciário pode apreciar autorregulamentações que existem ou, na lacuna dessas, estabelecer previamente uma regulamentação temporária, até que o Parlamento crie diretrizes. Além disso, eventual norma ou “termos e condições” já existentes devem estar balizadas pelo texto constitucional, podendo o Judiciário, e o Supremo Tribunal Federal, através do controle de constitucionalidade, discipliná-las, que é o que vem ocorrendo atualmente no plenário da Corte. O ideal é que as próprias plataformas construam suas ferramentas de autorregulação para se sintonizarem aos regimes jurídicos nacionais e acordos internacionais. A Meta, pelo discurso de seu dono, está se afastando disso.
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PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF), PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (RS), É DOUTOR EM DIREITO