O Brasil, dotado de uma das maiores redes hidroviárias do mundo, está diante de um paradoxo inquietante. Apesar do enorme potencial que seus rios representam para a logística de cargas de baixo custo e alta eficiência, o País negligencia sistematicamente essa riqueza natural. As hidrovias, que poderiam estar no centro da estratégia nacional de transporte, são tratadas como um detalhe periférico na política pública. Enquanto isso, as grandes potências como os Estados Unidos, a União Europeia e a China transformam suas redes fluviais em pilares de eficiência econômica. No Brasil, o setor privado faz a sua parte, investindo em tecnologias, terminais e operações sofisticadas, mas encontra no governo um parceiro ausente, incapaz de cumprir até mesmo as obrigações mais básicas.
Empresas como Hidrovias do Brasil, Amaggi e Cargill são exemplos do dinamismo privado que insiste em florescer mesmo diante de condições adversas. Milhões de dólares foram investidos em frotas modernas, terminais avançados e soluções logísticas que permitiram o escoamento eficiente de grãos, minérios e combustíveis em regiões estratégicas como o Norte e o Centro-Oeste. Mas todo esse esforço é frustrado pela inação estatal. Para cada empurrador ou barcaça que entra em operação, os gargalos estruturais do sistema hidroviário permanecem intocados, graças à ausência de políticas públicas eficazes.
Um exemplo emblemático desse descaso é a questão da dragagem. A redução dos níveis dos rios durante períodos de estiagem é previsível e recorrente. A solução técnica para garantir a navegabilidade é simples e barata: dragar os trechos críticos regularmente. Estimativas apontam que menos de US$ 10 milhões por ano seriam suficientes para resolver o problema em trechos prioritários. Esse valor, uma fração de qualquer orçamento governamental, parece estar além do alcance das autoridades brasileiras, cujas prioridades estão desalinhadas com as necessidades do País.
O contraste com o exterior é revelador. Nos Estados Unidos, o Rio Mississippi, que movimenta mais de 500 milhões de toneladas de carga por ano, é um modelo de gestão e manutenção. O Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos (Usace, na sigla em inglês) não apenas garante a dragagem regular, mas também administra um sofisticado sistema de sinalização e eclusas, consolidando o Mississippi como uma das artérias comerciais mais importantes do mundo. Na Europa, os rios se integram a redes intermodais de transporte. Os investimentos maciços na infraestrutura fluvial na China demonstram um compromisso inabalável com o crescimento econômico. No Brasil, a negligência governamental condena as hidrovias a uma irrelevância crescente.
A insegurança agrava ainda mais o quadro. Nos últimos anos, ataques criminosos frequentes de “piratas dos rios” às embarcações, especialmente na Amazônia, roubam combustíveis e outras cargas valiosas. As empresas privadas, pressionadas a agir em um vácuo de segurança pública, investem em escoltas armadas e sistemas de proteção para suas operações.
A dependência excessiva do transporte rodoviário encarece a logística, aumenta as emissões de carbono e deteriora as estradas do País. As hidrovias, com seu potencial de reduzir custos logísticos em até 30%, são um antídoto óbvio para esses problemas. A ausência de uma estratégia nacional para o desenvolvimento hidroviário impede que o Brasil alcance sua plena capacidade econômica e logística.
Um programa nacional de concessões e privatizações pode transformar completamente o setor, trazendo a eficiência e os recursos necessários para sua modernização. Parcerias público-privadas (PPPs), como as que revitalizaram os portos e aeroportos do Brasil, são um modelo claro a ser seguido. A criação de uma agência reguladora independente garantirá que as concessões sejam geridas com transparência e profissionalismo.
Em termos de infraestrutura, um investimento de US$ 2 bilhões ao longo de uma década poderia modernizar eclusas, terminais e sistemas de controle. Dragagens regulares e melhorias na sinalização garantiriam a navegabilidade imediata. Além disso, a segurança deve ser priorizada com o uso de drones, patrulhas fluviais e monitoramento por satélite. As Forças Armadas desempenhariam seu papel fundamental de proteger os ativos que sustentam a economia do País.
O Brasil tem todos os ingredientes para se tornar uma potência hidroviária, mas continua refém de uma governança que ignora suas próprias riquezas. Enquanto outros países transformam suas hidrovias em símbolos de eficiência e desenvolvimento, o Brasil desperdiça um potencial que poderia redefinir seu futuro econômico. O governo brasileiro deve se tornar um facilitador do progresso. O setor privado já liderou o caminho. Agora, é hora de o Estado finalmente cumprir o seu papel.
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EMPRESÁRIO, MEMBRO DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DO FUNDO EXAGON, DA ALPER SEGUROS, DA AGRIBRASIL E DA CAPTURIANT, FOI SECRETÁRIO ESTADUAL DE AGRICULTURA EM SÃO PAULO