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Opinião|IA: mundo rico, país pobre e povo miserável

Temos a oportunidade teórica de superarmos os bolsões de pobreza. Por outro lado, há a possibilidade de um mundo mais perverso e ainda mais desigual

Por Ronaldo Mota

A inteligência artificial (AI) está mudando o mundo contemporâneo tal qual o acesso generalizado à rede mundial de computadores, a internet, impactou a todos, no início deste século, em termos econômicos e comportamentais. Além disso, com a possibilidade de que as mudanças sejam ainda mais rápidas, profundas e abrangentes.

Os estudiosos costumam dividir a emergência da IA em três grandes etapas: 1) a fraca; 2) a geral – em inglês, Artificial General Intelligence (AGI); e 3) a super. Vivenciamos neste momento (2024-2025) a passagem entre as etapas 1 e 2.

Na fase 1, lidamos, basicamente, com máquinas reativas, calcadas em memória, tendo como um dos marcos desta era a máquina Deep Blue/IBM, que venceu Gary Kasparov no xadrez em 1997. O início gradativo da migração para a etapa 2 tem como uma das referências o surgimento do AlphaZero/Google, em 2017, que triunfou no xadrez sobre todos as máquinas tradicionais descendentes diretas do Deep Blue (Stockfish 8 e outras). A marca desta transição de fases é a utilização, em grande escala, das redes neurais, da aprendizagem de máquinas e a popularização, a partir de 2023, das inteligências artificiais generativas.

Esta etapa 2, denominada AGI, segundo alguns estudiosos, irá seguir progressivamente até próximo da virada desta década, quando praticamente todas as tarefas cognitivas poderão, enfim, ser realizadas, com pleno sucesso, por máquinas. Mais do que isso, a AGI decidirá, sem intervenção humana direta, o que aprender. A teoria da mente terá sido, parcialmente, incorporada às máquinas, e os sistemas inteligentes começarão a inferir necessidades e intenções humanas.

A fase 3, super, é ainda do campo da ficção, mas prevê-se a possibilidade de máquinas sencientes, as quais percebem pelos sentidos (dor, paixão, raiva, alegria, etc.). Sentimentos, crenças, autoconsciência e controle de suas emoções deixarão de ser marcas exclusivamente humanas.

Sobre perspectivas, um dos mais respeitados futurólogos vivos, Ray Kurzweil, destaca o que vem por aí em termos de energia, manufatura e medicina. Segundo ele, esses setores essenciais, atingidos até aqui marginalmente, serão centrais neste futuro próximo.

O mundo será mais rico e abundante, como ele prevê. Nem por isso será, necessariamente, mais justo ou igualitário. Dependerá de como lidamos com esse tema atualmente. No caso brasileiro, estamos (governo, empresas e academia) ainda demasiadamente tímidos no trato do tema IA, correndo o risco de comprometermos as próximas gerações.

Nesta fase 2, na qual estamos mergulhados, há grandes chances de a questão energética ser resolvida ou bem equacionada. Por mais de dois séculos temos nos abastecido de fontes poluidoras e não renováveis. Bastaria utilizarmos 0,01% da radiação solar que incide sobre o planeta e todas as necessidades humanas de energia seriam atendidas.

As células solares estão atualmente 99,7% mais baratas e muito mais eficientes do que eram meio século atrás. Uma dificuldade remanescente decorre das variações de incidência solar e a necessidade de processos eficientes de estocagem.

Uma vez equacionado o desafio acima, por certo, a energia solar irá substituir, com vantagens, os combustíveis fósseis e o carvão. AGI é parte da solução, permitindo pular dos 20 mil compostos inorgânicos conhecidos hoje para mais de 400 mil opções (GNoMe/Google e outras iniciativas). Via a abundância de novos materiais disponíveis, células fotovoltaicas e baterias altamente competitivas poderão ser viabilizadas graças à inteligência artificial.

Com energia disponível quase ilimitada, uma outra revolução estará em curso, a da manufatura. Os custos de todos os insumos, de vestuário à comida, sofrerão drásticas reduções, seja pela energia barata, seja pelos avanços de robótica e da automação de todos as etapas dos processos de produção.

Outra área fortemente impactada será a da medicina. Sairemos de tratamentos gerais aplicáveis a todos, a partir do diagnóstico da mesma enfermidade, para personalizarmos o tratamento na escala de cada indivíduo (farmacogenômica). A inteligência artificial viabilizará uma customização de drogas e de tratamentos para cada situação, desenhadas especificamente para cada enfermo.

Com IA, temos a oportunidade teórica de superarmos os bolsões remanescentes de pobreza e de miséria. Por outro lado, há a real possibilidade de um mundo mais perverso, ainda mais desigual e com consequências nefastas para aqueles que subestimarem ou não souberem lidar com as transformações em curso.

O que se pode afiançar é que, ao não investirmos fortemente no aprendizado, no domínio e no uso de IA, o futuro é, definitivamente, nada promissor. Corremos o risco de habitarmos um mundo cruel, o qual, paradoxalmente, poderá ser rico e abundante, mas com regiões pobres e carentes habitadas por povos miseráveis. Ou, pior do que isso, nações e populações irrelevantes.

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PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, É DIRETOR-SECRETÁRIO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO

Opinião por Ronaldo Mota

Professor titular aposentado da Universidade Federal de Santa Maria, é diretor-secretário da Academia Brasileira de Educação