A primeira indicação de Lula para o Supremo Tribunal Federal (STF) em seu terceiro mandato tem suscitado polêmica. O escolhido do presidente é Cristiano Zanin, que foi seu representante legal nas ações da Lava Jato. Parte da esquerda defende a indicação acusando cinismo e ingenuidade de falar em republicanismo. Já críticos da indicação no campo progressista se posicionam contrariamente à indicação por serem favoráveis a que a vaga seja ocupada por mulheres e pessoas negras. É o republicanismo, no entanto, que torna a demanda pela pluralização da composição do tribunal uma questão de justiça.
Há diferentes tradições de republicanismo e uma boa literatura a seu respeito. Considerando os sentidos mais largamente compartilhados do termo, podemos entender por republicanismo um conjunto de elaborações orientadas a assegurar a soberania popular e o primado do público.
Um instrumento para isso é o direito, um direito a que todos consentem e pelo qual todos estão vinculados. Pensadores do republicanismo entendem que esse arranjo torna público o exercício do poder e constrange quem o exerce a não o exercer em benefício próprio.
Heloisa Starling mostra como ideias e discursos republicanos deram vida a movimentos contestatórios no Brasil. Mas a prontidão com que parte de pessoas autodeclaradas de esquerda defende a indicação de Zanin por Lula, depois do patrimonialismo escancarado do governo Bolsonaro, faz pensar que a inscrição constitucional da forma republicana de governo não reanimou o republicanismo entre nós. Mais desanimador, a vagueza do termo republicano é usada para contestar o juízo de que a indicação do seu ex-advogado pelo atual presidente é antirrepublicana.
Já a crítica da indicação adquire a forma de defesa de pessoas pertencentes a minorias sociais para a vaga. Muitos se insurgem, então, contra o caráter identitário e a submissão da mais alta instância judicial do País à lógica da representação política. O republicanismo permite rebater, contudo, essa contestação, consistindo numa plataforma adequada para formular uma defesa da indicação de não homens e não brancos para a vaga.
Uma razão para essa adequação é contextual. A sociedade brasileira é plural do ponto de vista de gênero e étnico-racial. No STF, temos atualmente 9 homens, entre 11 ministros, e todos os 11 ministros são brancos. Nós não percebemos, mas, se quem não é homem nem branco tem chances quase nulas de ser indicado, é porque gênero, raça, cor e etnia importam. A insistência de Lula em indicar Zanin e a disposição de seus defensores evidenciam não só o patrimonialismo que nos constitui como sociedade, como também a naturalidade que torna a restrição aos espaços de poder à minoria masculina e branca socialmente imperceptível.
Outra razão para a defesa da indicação de mulheres e pessoas negras ou indígenas para as instâncias superiores do Judiciário é que sua homogeneidade em matéria de gênero, raça e etnia nos é prejudicial. Mulheres e não brancos podem replicar discursos machistas e racistas, o que significa que indicá-los não nos beneficiará, necessariamente. Mas há mulheres e não brancos qualificados técnica e teoricamente para o cargo, bem treinadas em interpretar os fatos sociais e as normas jurídicas de perspectiva crítica.
Podemos argumentar que a composição predominantemente masculina e branca do STF não lhe impediu de contribuir para a construção de uma sociedade mais igual em direitos nas últimas três décadas. Foi possível avançar nessa construção, apesar da composição do tribunal, porque a imaginação nos possibilita representar perspectivas alheias, ainda que inteiramente distintas da nossa. Mas por que não incorporar ao STF pessoas inclusive mais qualificadas do que a maior parte dos atuais ministros e distintas deles sexual e racialmente?
Qualificar de “identitária” a demanda é ignorar a super-representação de uma identidade de gênero e racial na atual composição. Também é, em algum grau, supor que os entendimentos que mulheres, negros e indígenas ocasionalmente apresentem como ministros do STF serão determinados por seu gênero, raça e etnia, respectivamente. É supor, em suma, que seus entendimentos sobre questões de interesse comum serão informados por um único aspecto de sua condição.
Penso que seria bom para todos ter no STF brasileiros que se constituíram em relação ao mundo e construíram o mundo para si desde posições diferentes em matéria de gênero, raça e etnia. O espaço público brasileiro se tornou mais plural, é preciso que mesmo uma instância técnica incorpore essa pluralidade. Dar a não homens e não brancos lugar a uma mesa é uma forma de qualificar o debate dentro do tribunal e a sua comunicação com a sociedade.
Não se trata de aspirar a um republicanismo ideal, e, sim, de cobrar o mínimo de republicanismo numa sociedade multiétnica. O ato de indicar seu Zanin ao STF, ainda que “não só” pelos serviços prestados, rebaixa a lei e comunica o contrário de uma relação republicana com ela. Debater a escolha publicamente, ao seu turno, é uma forma de emprestar realidade à ideia republicana de separar coisa pública de privada e pluralizar processos pelos quais se produzem decisões que valem para todos.
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DOUTORA EM DIREITO INTERNACIONAL PELA USP, PESQUISADORA NO PROJETO TEMÁTICO ‘PLURALISMO RELIGIOSO E DIVERSIDADES NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE’ (CEBRAP) E VISITING SCHOLAR NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY