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Opinião|Inovação em favor dos investimentos públicos

A inovação da lei que regula a securitização da dívida ativa inspira novas ações para aumentar a eficiência alocativa dos recursos governamentais

Por José Roberto Afonso

A recente sanção da Lei Complementar n.º 208, de 2 de julho, representa um marco histórico para as finanças públicas do País. Após oito de anos de intensos debates nas duas Casas Legislativas, o poder público promoveu uma inédita alteração da Lei n.º 4.320, de 1964, que regula o funcionamento dos orçamentos públicos no Brasil há 60 anos. É a primeira vez que a emblemática lei das contas públicas é modificada no regime democrático pós-Constituinte, a partir de proposta de iniciativa do então senador José Serra. A nova legislação amplia a capacidade de investimentos do Estado ao autorizar a securitização do fluxo de recebíveis da dívida ativa dos governos federal, estadual e municipal, registrado na contabilidade pública, com potencial de arrecadação de cerca de R$ 100 bilhões.

Deve-se ter claro que as novas operações de cessão dos direitos creditórios contribuem para a melhoria do processo de cobrança de tributos. Há uma cultura de não pagamento de dívidas tributárias por muitos contribuintes brasileiros, diante dos recorrentes programas de parcelamento e até moratória do que devem em tributos. Como os direitos alienados deixam de compor o ativo do setor público, o devedor de uma dívida cedida ao setor privado não poderá facilmente partir para novo reparcelamento: é pagar ou ficar inadimplente.

No livro Securitização de Créditos de Entes Subnacionais, os especialistas no assunto explicam as operações de securitização com números relevantes. Em 2018, a contabilidade pública registrou R$ 3,6 trilhões em dívida ativa no balanço consolidado de todos os governos do País – sendo R$ 2,2 trilhões somente na União. Considerando que 10% desse estoque seja passível de operações de securitização, pode-se estimar uma arrecadação de R$ 100 bilhões nos cofres públicos. Dois terços desse valor podem ingressar na conta única do Tesouro Nacional.

Uma crítica equivocada ao projeto é que essa nova lei autoriza a venda de tributos futuros. Mas o objetivo do novo instrumento é justamente o oposto: a cessão do fluxo de tributos e valores que não foram pagos, ou seja, o fato gerador já ocorreu. No passado, a receita não ingressou nos orçamentos públicos. Portanto, a securitização representa a alienação de ativos muito bem identificados e registrados na contabilidade pública. A nova receita se refere a captações de recursos devidos e que nunca foram recolhidas no passado. Tais operações de securitização são tão relevantes que merecem atenção especial nos manuais que regulam as estatísticas fiscais, seja o editado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2014, seja o capítulo específico previsto no do Banco Central do Brasil.

Importa repetir que a dívida ativa representa o conjunto de direitos ou créditos vencidos em favor da Fazenda pública. É um ativo do setor público que, segundo a nova lei, poderá ser convertido em títulos negociáveis no mercado, por meio da cessão onerosa de recebíveis para fundos ou empresas de securitização. Os novos recursos recolhidos serão classificados como receita de capital, à luz da própria Lei n.º 4.320, e deverão ser forçosamente destinadas a financiar investimentos, nos termos do artigo 44 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

As operações de securitização da dívida ativa representam um caminho crucial para viabilizar a expansão do investimento em infraestrutura, nas diferentes esferas de governo. Cabe observar que o total do gasto com investimentos no País foi de pífios 1,85% do Produto Interno Bruto (PIB), entre 2008 e 2020, na média, quando estudos apontam que o setor de infraestrutura no Brasil demanda investimentos em torno de 5% do PIB.

O setor de ferrovias, como exemplo, pode ser muito favorecido com os recursos provenientes da securitização da dívida ativa. Normalmente as receitas dos empreendimentos ferroviários não são suficientes para cobrir custos de implantação e operação das linhas férreas. A viabilidade dos projetos depende de aportes governamentais para sair do papel. A experiência internacional ensina que as externalidades positivas – menos emissão de gases poluentes, minimização de custos logísticos e maior segurança – justificam os investimentos do poder público em ferrovias, necessários para atrair a participação do setor privado em novas estradas de ferro.

O ex-senador José Serra teve a iniciativa de introduzir o dispositivo constitucional que criou o DNA da LRF nas discussões durante a Assembleia Constituinte de 1988. Foi novamente bem-sucedido ao iniciar a concertação política que promove a primeira e única alteração da Lei n.º 4.320/1964 no regime democrático. Quem sabe agora não se possa sonhar com a tão almejada renovação da famosa lei dos orçamentos, que poderia ser sucedida por um inédito código fiscal. A inovação da lei que regula a securitização da dívida ativa inspira novas ações para aumentar a eficiência alocativa dos recursos governamentais, no sentido de promover os investimentos necessários para o desenvolvimento sustentável do País.

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DOUTOR EM ECONOMIA, PROFESSOR DO IDP, É VICE-PRESIDENTE DA FIBE

Opinião por José Roberto Afonso

Doutor em Economia, professor do IDP, é vice-presidente da Fibe