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Opinião|Jockey Club: patrimônio ameaçado

Numa cidade com tantos bens do patrimônio histórico precisando de atenção, medida de legisladores de São Paulo deixa a impressão de que motivação pode ser outra, para além do cuidado com os animais

Por Wolney Unes

Em tempos em que as redes sociais inflamam todo e qualquer debate, a causa da proteção animal é um desses temas com poder de combustão. Desta vez, um vereador paulistano encontrou no Jockey Club um belo palanque, justamente às vésperas da eleição. Do outro lado contrapõe-se o interesse de incorporadoras em torno da região cujo desenvolvimento, ironicamente, o próprio Hipódromo Cidade Jardim alavancou.

Como noticiou o Estadão no mês passado, em apenas três anos, a proposta de transformar o Hipódromo Cidade Jardim em parque passou de uma ideia descartada – devido às limitações de seu terreno alagadiço e à sua proximidade com outro parque – para uma prioridade na gestão do prefeito Ricardo Nunes. É uma atitude no mínimo esquizofrênica por parte do poder municipal, já que atualmente a população pode usufruir do espaço sem que a Prefeitura tenha o ônus de cuidar nem de manter a área. E é importante frisar: o Jockey é o único clube social paulistano que já tem suas portas abertas para a população.

Patrimônio histórico e cultural da cidade de São Paulo, o Jockey Club é o maior complexo arquitetônico art déco do mundo, com mais de 600 mil metros quadrados de área. Localizado às margens do Rio Pinheiros, foi fundado em 25 de janeiro de 1941 e abriga construções assinadas pelo conceituado arquiteto Elisiário Bahiana – o mesmo autor do Viaduto do Chá – e pelo arquiteto francês Henri Sajous.

Sajous é responsável pela feição atual das fachadas, com detalhes elegantes em mármore travertino com grandes janelas e portas de ferro e vidro. Ele também concebeu o mobiliário especialmente para o salão nobre, que conta com poltronas com tapeçaria confeccionadas em Aubusson, na França, cortinas de seda tecidas em Lyon, mobiliário do Liceu de Artes e Ofícios paulistano, em pau-brasil, e por aí afora. E nem falamos das inúmeras obras de Victor Brecheret e de Bernard Dunand, entre outros. Esses são apenas alguns elementos da riqueza arquitetônica do Hipódromo Cidade Jardim.

Pois desde 2019 está em andamento um programa de restauro dessa joia paulistana, financiado via Lei de Incentivo à Cultura, com objetivo de restaurar e preservar o acervo arquitetônico do Jockey Club, incluindo as tribunas sociais, com seus salões, bens integrados e mobiliário. É uma tarefa complexa, que reúne profissionais altamente capacitados de todo o País para lidar com materiais sofisticados, como mármore, bronze, estofados em veludo, lustres de cristal, caixilharia, entre outros itens remanescentes do século 20.

O programa de restauro também beneficia a população ao qualificar futuros profissionais nas áreas da zeladoria e conservação, além de restauro. Recentemente, no fim de junho, formamos mais 16 jovens que completaram 260 horas de aulas em diversas disciplinas, totalmente gratuitas e com bolsa-incentivo, sob a orientação de profissionais de universidades da Bahia, Goiás, São Paulo e Minas Gerais. Essa foi já a terceira turma. É gratificante ver a nova geração se apaixonar pela história e pelo patrimônio do Jockey Club, que agora também faz parte de suas vidas.

Um desses jovens é Wesley Nunes Delfino, morador da zona leste de São Paulo, que aperfeiçoou seus conhecimentos em marcenaria por meio do curso do Ateliê de Artes e Ofícios. Com 18 anos, seu interesse por antiguidades pode se transformar em uma profissão, após ter assistido às aulas de história da arte, levantamento e diagnóstico arquitetônico, marcenaria, entre outras. Ele contou que seu foco é o design de móveis e que, sem dúvida, com a experiência adquirida nas instalações do Jockey Club, terá mais bagagem para seguir sua carreira.

A democratização dos espaços do Jockey Club não é uma novidade. Todos podem assistir, inclusive, às corridas. É importante destacar que o turfe no Hipódromo Cidade Jardim segue o Manual de Boas Práticas para o Bem-Estar Animal em Competições Equestres do Ministério da Agricultura, e conta com um departamento antidoping que é referência na América Latina.

As competições, ameaçadas pelo Projeto de Lei n.º 691/2022, reúnem cavalos puros-sangues ingleses, provenientes de Estados como Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul. A prática movimenta uma cadeia produtiva que vai muito além da cidade de São Paulo, empregando trabalhadores de haras, indústrias de nutrição e de medicamentos veterinários e outras empresas. O turfe e o uso das dependências do Jockey Club evoluíram com os novos tempos, sem perder de vista a tradição.

O problema das novas medidas dos legisladores da cidade de São Paulo é que buscam intervir em algo que está funcionando: o patrimônio cultural do Jockey Club está bem atendido. Numa cidade com tantos bens do patrimônio histórico precisando de atenção, é inevitável que a medida deixe a impressão de que a motivação pode ser outra, para além do cuidado com os animais.

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DIRETOR DA ELYSIUM SOCIEDADE CULTURAL, ORGANIZAÇÃO RESPONSÁVEL PELO PROGRAMA DE RESTAURO DO JOCKEY CLUB, É PROFESSOR TITULAR DE PATRIMÔNIO CULTURAL

Opinião por Wolney Unes

Diretor da Elysium Sociedade Cultural, organização responsável pelo Programa de Restauro do Jockey Club, é professor titular de Patrimônio Cultural