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Opinião | Judicialização da saúde, ‘fenômeno’ brasileiro

A medicina vem propiciando que vivamos mais tempo, mas nem o sistema público nem o privado estão preparados para isso. É preciso mais investimentos

Por David Uip e Renata Santos

Há mais de duas décadas os sistemas público e privado de saúde vêm enfrentando o fenômeno da “judicialização em saúde”, que cresce exponencialmente em valores e exige constantes ajustes de rota por parte dos gestores.

Em 2003, a judicialização envolvia artigos como papel higiênico e a entrega de itens comprados em feira; depois, vieram até fraldas e protetores solares. Nada relativo a terapias medicamentosas.

Houve casos em que a judicialização foi benéfica. Existiram grandes demandas judiciais que beneficiaram populações com moléstias então negligenciadas pelo poder público, tais como HIV, hepatite C, doenças raras e oncológicas, entre outras.

De outra sorte, e lamentavelmente, uma parte da indústria farmacêutica promoveu ensaios clínicos de novos produtos por meio da judicialização. Em vez de custear o tratamento com recursos próprios, algumas farmacêuticas apresentavam os resultados clínicos com a base de dados dos pacientes que recebiam medicamentos por meio de ações judiciais. Um descalabro, às custas do erário.

Não para por aí. Existia, e agora está regulamentada, a prescrição de medicamentos para uma doença não descrita na bula daquele fármaco – chamada de prescrição off label. A indústria proprietária da patente do medicamento não confirma a indicação, não fez estudos rigorosos que garantam seu resultado, mas os médicos já receitam e o Judiciário determina a entrega. É outro absurdo.

É de se considerar, no entanto, que, em muitos casos, a procura pelo Judiciário para recepção de medicamentos é justa e se deve ao fato do desabastecimento dos itens nas farmácias públicas. O paciente não tem como esperar.

Também é preciso destacar que a classe médica, de forma abrangente, não se informa sobre quais são os tratamentos possíveis para os diferentes planos de saúde e para o Sistema Único de Saúde (SUS).

A nossa legislação em saúde tem muitas “vírgulas”. Também é esparsa, com a edição de diversas portarias regularmente modificadas ao longo dos anos, o que torna as normativas bastante difíceis de serem acompanhadas.

Entre 2013 e 2018, na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), trabalhamos no combate à judicialização, atuando incansavelmente para minimizar os danos aos pacientes e aos cofres públicos.

Nos aproximamos do Poder Judiciário, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e Conselho Nacional de Justiça, com o inestimável apoio da Procuradoria-Geral do Estado.

À época existiam em torno de 53 mil demandas ativas, envolvendo solicitação de medicamentos, insumos e correlatos, e de procedimentos, como exames, consultas e cirurgias. No comando da área de judicialização, reduzimos em 25% o número de processos contra a pasta da Saúde no período de 2016 a 2018, com uma queda de 30% (economia de R$ 300 milhões) nos valores despendidos pelo Tesouro do Estado no custeio dessas demandas.

O sucesso veio do grupo de trabalho criado pelo Tribunal de Justiça com vistas à demonstração ao Judiciário dos danos da judicialização, e o oferecimento pela SES-SP da solução administrativa de conflitos.

No SUS, a responsabilidade pela inclusão de medicamentos é da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), do Ministério da Saúde. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável pela regulação dos planos privados de saúde, usa as mesmas bases da Conitec.

Esses processos, no entanto, não são rápidos o suficiente para alcançar o desenvolvimento da indústria da medicina – até mesmo porque a criação de novas tecnologias precisa de testes, resultados, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que muitas vezes são apresentados após o lançamento do novo produto, com base em aprovações feitas no exterior e sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Os gastos no Estado de São Paulo ainda giram em torno de R$ 900 milhões ao ano com o atendimento das demandas judiciais.

O “caos judicial” no sistema privado de saúde entrará nas mesmas fases já percorridas pelo poder público: observação, registro, tomada de decisão em conjunto com o Judiciário.

A saúde suplementar cada vez mais vêm apresentando aos pacientes contas altas quando da sua saída de alguns hospitais, com a alegação de que o tratamento não era coberto pelo plano. Ocorre que o paciente, ou mesmo o responsável por ele, não teve, na maior parte dos casos, acesso a essa informação.

Nem sempre os menos favorecidos conseguem alcançar o Judiciário, o que traz ainda mais desigualdade no fornecimento de saúde para todos. Os pacientes e seus familiares são o elo fraco da relação.

A medicina vem propiciando que vivamos mais tempo, mas nem o sistema público nem o privado estão preparados para isso. É preciso mais investimentos.

Dificilmente aquele que deixou acontecer a “catástrofe” terá condições de lidar com seus efeitos. A história é recente, mas basta estudar os caminhos já percorridos, ver o que funciona e o que não funciona, para não levarmos o sistema de saúde à falência.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO INFECTOLOGISTA, REITOR DO CENTRO UNIVERSITÁRIO FMABC, DIRETOR NACIONAL DE INFECTOLOGIA DA REDE D’OR, EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO (2013-2018); E ADVOGADA ESPECIALIZADA NA ÁREA DE DIREITO EM SAÚDE, EX-ASSESSORA DE GABINETE DA SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO

Opinião por David Uip

Médico infectologista, reitor do Centro Universitário FMABC, diretor nacional de Infectologia da Rede D’Or, foi secretário de Estado da Saúde de São Paulo (2013-2018)

Renata Santos

Advogada especializada na área de Direito em Saúde, foi assessora de Gabinete da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo