Conceituar justiça parece ser uma das tarefas mais fáceis, quando se está envolto em injustiças, e o Brasil, por sua condição de um dos países mais desiguais do mundo, sabe bem que a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco.
A incorporação desse ditado popular é a conformação de que as injustiças já fazem parte do cotidiano e da vida sofrida de quem precisa de justiça no País: pessoas vulnerabilizadas por certas condições como gênero, etnia, lugar social, localização geográfica e idade.
A partir destes recortes de vulnerabilidades é possível chegar a uma relação entre injustiça e mudanças climáticas, já que algumas pessoas sofrem mais as consequências das alterações climáticas do que outras, sendo o caso de aplicabilidade do que se compreende por justiça climática como fórmula que possibilitará a equidade nestes casos.
Os exemplos são variados e se tornam mais realísticos diante da manifestação dessas mudanças climáticas: quando o calor aumenta e não se tem ar-condicionado; a chuva desce o morro e invade o barraco; o rio inunda e o alimento do pescador acaba; a mata pega fogo e indígenas e quilombolas perdem tudo; quando doenças provenientes do aumento do calor ou do excesso de chuva ampliam consideravelmente a incidência sobre camadas mais pobres dos territórios rurais e urbanos, a exemplo da dengue, da chikungunya e de doenças respiratórias.
Repare que são sempre as mesmas vítimas, e então se percebe que aqueles recortes de vulnerabilidades têm presença marcada em todas essas situações e se constata que quem menos deu causa a tais eventos são as principais vítimas deles.
Em seu Relatório Síntese de 2023, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) revela que aproximadamente 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas vivem em contextos altamente vulneráveis à mudança do clima. Ressalte-se que essa vulnerabilidade é tanto na seara humana quanto nas esferas dos ecossistemas, portanto, são interdependentes. Regiões e pessoas com consideráveis restrições ao desenvolvimento têm alta vulnerabilidade às ameaças climáticas. Um exemplo atual disso é a alta incidência de casos de dengue a partir das condições favoráveis à reprodução do mosquito transmissor com o aumento da temperatura e da precipitação.
Diante deste quadro social (e a culpa não é da natureza), a justiça climática se firma e significa tratar os desigualmente atingidos pelas mudanças climáticas na medida de suas vulnerabilidades.
Todas as pessoas devem ser sujeitas a proteção num contexto de mudanças climáticas. Ocorre que algumas pessoas são mais necessitadas de proteção do que outras. Essa é a leitura de correção de desigualdade na perspectiva climática, que dialoga com o conceito de justiça climática.
Os desafios do Brasil – um país que tem sua origem na exploração colonial e se desenvolve por meio do sistema escravagista – são muitos e se dirigem tanto aos agentes privados que exploram o meio ambiente e dão causa à destruição da natureza, mas principalmente aos poderes públicos que têm o dever de preservação ambiental e são garantidores de um meio ambiente equilibrado para esta e as futuras gerações (artigo 225 da Constituição).
E mais: um país que é assentado jurídica e politicamente num regime republicano de combate às mais variadas espécies de desigualdades (artigo 3.º da Constituição) deve priorizar a inclusão de pessoas excluídas pelo clima.
Sobre a atuação pública como agente catalisador de justiça, a forma que se dará este desempenho é por meio das políticas públicas, que devem ser transversais, permanentes, preventivas e focar na proteção de pessoas e grupos vulnerabilizados.
Contudo, para fazer política pública neste nível são necessários vontade política e, sobretudo, recursos financeiros.
A mera disponibilidade de dinheiro – que deve ser fomentada por agentes privados como petroleiras, mineradoras, siderúrgicas e o mercado financeiro – não será suficiente, já que o investimento correto em cada política deve ser analisado a partir da perspectiva científica, participativa e que mire, fundamentalmente, a justiça climática em cada ação de prevenção e de resposta a desastres.
É necessário, então, o investimento público e privado no financiamento de instrumentos que promovam a justiça climática, mas que estes recursos sejam bem empregados a partir de critérios científicos e resolutivos (é preciso saber gastar).
O primeiro passo é reconhecer as desigualdades em contextos climáticos a partir de recortes de vulnerabilidades; o segundo, acreditar que a justiça climática deve ser um fator de equidade e, portanto, presente nas políticas públicas; o terceiro, investir em instrumentos de fomento à adaptação climática, já que é necessário preparar os territórios e seus habitantes para um contexto cada vez maior de vulnerabilidade; por fim, é necessário realizar escolhas inteligentes na alocação de recursos públicos e privados.
Implementar a justiça climática nas políticas públicas de desastres no Brasil se torna o maior dos desafios e, ao mesmo tempo, um dever de uma nação que tem entre seus objetivos fundamentais o combate às desigualdades das mais diversas modalidades, inclusive a climática.
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PROCURADOR FEDERAL (AGU), DOUTORANDO EM DIREITO (UNB), É AUTOR DE VIDAS INTERROMPIDAS PELO MAR DE LAMA (LUMEN JURIS)