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Opinião | Justiça para quem?

A vítima sofre a primeira vitimização decorrente do crime, mas passa por vitimizações secundárias e terciárias. É preciso cessar os ciclos de violência

Por Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini

O sistema de Justiça demanda necessário giro paradigmático no apoio às vítimas, com reconhecimento e respeito à dignidade da pessoa humana. Transformar a cultura, moldar uma nova forma de atuar, potencializar trabalhos e promover um verdadeiro resgate das vítimas, historicamente relegadas. A aprovação do regime de urgência para o Projeto de Lei 3.890/2020, que institui o Estatuto das Vítimas, pela Câmara dos Deputados, reforça que a pauta não pode mais ser postergada.

Quando o Estado afastou a vingança privada e assumiu para si o monopólio de punir, passou a ter foco unilateral na condenação e nos direitos do acusado, o que não deve ser olvidado. Mas alijou a vítima do processo, ignorando os danos causados pelo crime, aniquilando direitos e, por vezes, conferindo tratamento incompatível com o trauma vivenciado. E a vítima, que já sofria as dores do crime, além de não as ter cuidadas, passou a sofrer com as dores de um processo em que não é enxergada, sendo tratada como mero objeto de prova.

Reverter esse quadro de quase absoluta invisibilidade da vítima – em que, na expressão de Antonio Beristain, era convidada de pedra, e em outras vezes nem convidada – é essencial.

Impõe reconhecimento. Reconhecê-las implica subjetificá-las, reposicionando-as na centralidade dos processos. Reconhecê-las é o caminho para a efetividade de uma justiça democrática, que olha e equilibra todos os lados da balança.

O atendimento às vítimas deve lançar luz sobre suas necessidades específicas e buscar abraçá-las, de forma integral, para que o sofrimento impingido pelo delito possa ser ao menos mais suportável para aquela vítima, seja ela direta, indireta ou coletiva. E, percebendo o quanto o processo pode ser violento, para provocar a ação para que ele não seja mais pesado do que o próprio crime.

A vítima sofre a primeira vitimização decorrente do crime, mas passa por vitimizações secundárias, praticadas por aqueles órgãos que deveriam estar ali para lhe proteger, e vitimizações terciárias, decorrentes de uma cultura que tende a culpabilizar a vítima, que julga por estereótipos. É preciso cessar os ciclos de violência.

Há barreiras de acesso que o sistema de Justiça deve superar. A vítima precisa ter informações sobre o processo, explicitação da forma de funcionamento dos órgãos, orientação jurídica por linguagem empática e acessível, apoio e cuidado com abordagem baseada nos traumas, promoção dos direitos de participação no processo, de reparação e de proteção física e psicossocial, com encaminhamento qualificado para a rede de políticas públicas para tratar afetações relacionadas com a vitimização nas áreas de saúde, assistência, educação, entre outras providências.

Em todos os campos, a escuta ativa e compassiva concretiza-se como caminho para a justiça efetiva, para além da responsabilização, possibilitando às vítimas prosseguir.

Resultados diferentes demandam agir de forma diferente.

É indispensável uma rede intersetorial e interinstitucional integrada, especialmente diante do caráter transversal da atuação em prol das vítimas, e que seja responsiva ao trauma, o que hoje inexiste.

Se não podemos mudar o passado, podemos juntos construir o futuro que queremos.

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PROMOTORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, É COORDENADORA DO CENTRO ESTADUAL DE APOIO ÀS VÍTIMAS – CASA LILIAN

Opinião por Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini

Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, é coordenadora do Centro Estadual de Apoio às Vítimas – Casa Lilian