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Opinião | Lições do Plano Real

A principal delas é que só a política é capaz de levar o País a superar seus impasses e bloqueios

Por Sergio Fausto

O aniversário de 30 anos do Plano Real convida a refletir sobre os fatores que o levaram a ter êxito. Que lições continuam válidas até hoje?

A primeira delas é que não se pode fazer nada de bom e duradouro em matéria de políticas públicas sem conhecimento especializado. A vontade não substitui o conceito. O Plano Real se beneficiou de um longo amadurecimento da reflexão acadêmica sobre as características próprias do processo inflacionário no Brasil. O departamento de Economia da PUC-Rio foi o principal centro dessa reflexão. Ali nasceu a ideia de levar à indexação ao extremo para debelar a inflação. Passaram-se mais de 15 anos entre o primeiro lampejo – apresentado em um texto para discussão por André Lara Resende – e a concretização da ideia sob a forma engenhosa da URV.

A segunda lição diz respeito à importância de expressar ideias gerais abstratas na linguagem concreta e específica do Direito. Sem isso, a formulação de políticas não produz efeitos ou, pior, gera resultados contrários ao pretendido. Planos anteriores produziram contenciosos jurídicos que se arrastaram por anos a fio sem decisão final. Sobre a incerteza jurídica resultante, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan disse uma frase antológica: “No Brasil, até o passado é imprevisível”.

Na democracia, a boa técnica não prescinde da boa política. Políticas públicas não se fazem sem saber especializado, mas seu sucesso depende de liderança, em especial até que se consolidem. Essa é a terceira lição.

Sem Fernando Henrique Cardoso não teria havido Plano Real. Ele fez a ligação entre a boa técnica para estabilizar a economia (e nessa matéria o time da PUC-Rio era então imbatível) e a boa política. A primeira resistência a vencer foi a dos próprios membros que formariam a equipe econômica. Faltavam menos de dois anos para o término do mandato presidencial e Itamar Franco havia trocado três vezes de ministro da Fazenda em pouco mais de seis meses. As condições políticas para um programa sério de combate à inflação não estavam dadas, para dizer o mínimo. Fernando Henrique convenceu os economistas de que era possível criá-las.

Não se faz boa política sem o Congresso. Na época, as medidas provisórias davam imenso poder ao Executivo. Fernando Henrique preferiu o caminho mais árduo da negociação com o Legislativo para dar maior legitimidade política às ações do governo. Negociou exaustivamente, mas sabendo aonde queria chegar. Desde o início, o combate à inflação veio acompanhado de uma agenda de políticas para modernizar o Estado e a economia. Basta ler o texto introdutório ao Programa de Ação Imediata, adotado um mês após a posse de Fernando Henrique no Ministério da Fazenda, para constatar que, mais de um ano antes de nascer, o Real já era parte de um programa mais amplo de reconstrução institucional, que começava pela recuperação da confiança na moeda.

O senador Fernando Henrique conhecia o Congresso por dentro, e o respeitava. Intelectual público, sabia da importância de explicar os porquês das ações da equipe econômica, e confiava na capacidade da opinião pública de entendê-los. Preferiu o uso público da razão à demagogia salvacionista. Enfrentou as críticas e a oposição como parte normal e necessária da democracia. Ironizou, argumentou, esgrimiu, mas jamais ofendeu. Manteve-se fiel à promessa de nada fazer sem antes avisar à sociedade, e resistiu às pressões para uma reedição desesperada de mais um choque heterodoxo. Aceitou a candidatura à Presidência da República por entender que a sorte do plano, ainda em gestação, dependia da expectativa de sua sustentação no novo período presidencial que se avizinhava. Tomou a decisão em condições adversas, quando Lula da Silva aparecia com o dobro de intenções de voto nas pesquisas eleitorais e ainda não se sabia quando seria possível passar da URV à nova moeda.

A sociedade e a política mudaram muito nesses 30 anos. A agenda de desafios do País se tornou mais complexa e as condições para enfrentá-los, mais difíceis. Tínhamos um sistema político mais organizado e funcional e uma sociedade menos suscetível à intoxicação irracional provocada pelo uso das mídias sociais para destruir as bases da coexistência democrática civilizada. Ainda assim, foi árduo e longo o caminho do Real. Ele só se consolidou quando o seu principal opositor assumiu a Presidência da República, oito anos depois. E se comprometeu a não engatar marcha à ré.

A História não se repete, mas as lições de 30 anos atrás continuam válidas. A principal delas é que só a política é capaz de levar o País a superar seus impasses e bloqueios. A política miúda faz parte da democracia. O irracionalismo intoxicante, o golpismo, não. O espaço da grande política às vezes se expande, às vezes se contrai. Anda contraído nos últimos anos. Mas é possível alargá-lo. Na condução do Plano Real e da Presidência da República, Fernando Henrique elevou a qualidade do jogo democrático no Brasil, mudou o País de patamar. Ganhamos todos, até os que perderam na ocasião. Por isso ficará na História, a servir de exemplo.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Opinião por Sergio Fausto

Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP