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Opinião|Lobato: decifra-me ou te devoro

Não é a literatura o campo em que a complexidade e até a contradição são bem-vindas? Por que negar aos escritores aquilo que desejamos em seus livros?

Por Antonio Sampaio Dória

Monteiro Lobato, no 142.º aniversário do seu nascimento, continua devorando a todos nós. No café da manhã, no almoço, no jantar. Esfinge antropofágica antes que o movimento modernista existisse, foi acumulando saberes, deglutindo-os e regurgitando-os ao público brasileiro, sem distinguir entre os meios de veiculação: o livro (infantil e adulto), artigos na imprensa, cartas enviadas a altas autoridades, tudo se misturava no mesmo caldeirão, e novos ingredientes eram adicionados para engendrar a poção mágica que faria do Brasil um país desenvolvido.

Críticos de Lobato, canceladores de Lobato, existem muitos, mas nenhum tão eloquente quanto o próprio Lobato. Muitos homens existiam no mesmo homem, digladiando-se em luta encarniçada. O que um Lobato erguia, outro derrubava. A crítica à sua obra, ou ao homem, peca principalmente por destacar palavras pinçadas aqui e ali, negligenciando aquelas que negam as primeiras.

Exemplos? Abundam. Lobato trocava de pele como cobra.

Criador do personagem de um sucesso sem precedentes, tornado símbolo nacional, Jeca Tatu, Lobato enfastia-se: “Eu preciso vomitar o raio deste Jeca”. Depois de longo amadurecimento para a publicação dos primeiros livros, e vendas tão expressivas que o tornaram dono de prolífica editora, Lobato nega ser escritor ou literato; diz-se comerciante. Apontado por Oswald de Andrade como o primeiro renovador da literatura brasileira, é acusado de destruir a carreira de Anita Malfatti com um artigo. Colaborador incansável de jornais e revistas, Lobato critica a “língua bunda” dos jornais e conclui: “O jornalismo entre nós é perpetrado pela ralé da incompetência”. Começando como promotor público, não acredita na Justiça. Adido comercial em Nova York, revela ter nojo de si por participar de um governo “cretino”. Defensor da separação de São Paulo do Brasil, luta pelo ferro e o petróleo, que trariam a independência econômica nacional. Próximo de Getúlio Vargas, dá entrevista à BBC desancando o regime totalitário. Depois de escrever mais de 50 livros, lamenta não ter sido pintor.

Não seria diferente em suas obras. Afirmando em Negrinha “dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca – preparatório, e o momento dos filhos – definitivo. Depois disso, está extinta a mulher”, Lobato criaria uma ativa avó (mulher, supõe-se), Dona Benta, caracterizada pela erudição e sabedoria. E o racismo?, pergunta o leitor aflito. E a eugenia? Lobato participou da Sociedade Eugênica de São Paulo, formada por médicos, que publicou seus artigos sobre saneamento (o “maior” problema do Brasil à época). Mas se Lobato lamenta a situação do brasileiro, filho de “pais inferiores”, sem os caracteres fortes do alemão ou do inglês (o complexo de vira-lata é antigo), mais tarde, batendo-se pelo ferro, conclui: “Nosso problema não é político, nem racial, nem climatérico, mas pura e simplesmente econômico”.

Nada disso significa que não exista racismo em seus livros infantis. As odiosas expressões racistas (“negra beiçuda”, “negra de estimação”) lá estão, deixando educadores de cabelo em pé. Porém, fiel à infidelidade, mesmo na obra infantil entrechocam-se visões contrárias: Emília é admoestada. Em Histórias Diversas, aparece A Violeta Orgulhosa, arrotando superioridade por ser a única violeta branca. Enfrenta o argumento do Visconde, pois ela tinha menos pigmento que as outras, perde o rebolado, e o conto se torna um libelo contra o racismo.

“Monteiro Lobato era...” – preencha a gosto, acrescente um mas e deixe a mistura ferver. Lobato era capitalista por vocação – mas defendeu com ardor o socialismo e o comunismo da Rússia. Lobato era racista – mas escreveu Negrinha, denúncia da crueldade contra os negros pós-abolição, fez questão de ter um negro desconhecido entre os autores de sua editora, considerou Lima Barreto o melhor autor da época, além de ter publicado seus livros, e se encantou com as “manifestações da civilização negra” em Salvador. Desligue o fogo.

Tia Nastácia sofreu com xingamentos de Emília, mas recebeu elogios superlativos à sua cozinha – tratamento ambíguo. E as últimas obras trazem redenção. Depois de enriquecer (O Poço do Visconde), e ser chamada de “a outra avó dos meus netos” por Dona Benta, em A Reforma da Natureza as duas “matronas” são chamadas à Europa para acabar com a 2.ª Guerra. Tia Nastácia e Dona Benta, sábias e estadistas, têm “condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo” – no elogio máximo, a representação da pele branca e da pele negra. Emília, em contrapartida, tem um câncer causado pela radioatividade e perde os cabelos.

Não é justamente a literatura o campo em que a complexidade e até a contradição são bem-vindas? Por que negar aos escritores aquilo que desejamos em seus livros? Colar estereótipos a Monteiro Lobato pode ser perigoso. Vai o incauto colar o rótulo no nariz da esfinge, e quando se dá conta já foi engolido.

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MESTRE EM LITERATURA COMPARADA PELA USP, É AUTOR DE LIVROS INFANTO-JUVENIS, ENTRE ELES ‘A VIRADA DE TIA NASTÁCIA’

Opinião por Antonio Sampaio Dória

Mestre em Literatura Comparada pela USP, é autor de livros infanto-juvenis, entre eles 'A Virada de Tia Nastácia'