Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Lula e Macbeth

O poder de convencimento das mulheres não deve ser menosprezado, nem supervalorizado. Dizer isso não diminui Janja em nada

Por Anne Warth

Em uma das tragédias de William Shakespeare, o general Macbeth garante o triunfo da Escócia em inúmeras batalhas campais. Bravo e justo, sua lealdade ao rei é inequívoca, até que um dia, voltando de uma dessas guerras, ele se depara com três bruxas no caminho para casa. Delas, ouve que se tornará barão e, depois, rei. Inicialmente cético, Macbeth ganha o título de nobreza e, com isso, passa a acreditar na profecia. Aos poucos, é tomado pela ambição, sentimento alimentado por sua mulher, Lady Macbeth, e decide matar o rei. Ao assumir o reinado, Macbeth comete muitos outros crimes, abandonando todas as virtudes que eram marca de sua trajetória como militar. Lady Macbeth, consumida pela culpa, enlouquece e se suicida. Macbeth acaba por ser assassinado.

Clássicos da literatura reforçam e atualizam a má fama da mulher ao longo dos séculos. Essa impressão não se restringe à ficção. Afinal, o que torna uma obra atemporal é sua capacidade de refletir o espírito de seu tempo e a consciência de uma sociedade. Todos, em algum momento de sua vida, já ouviram alguma história de um homem que mudou radicalmente por causa de uma mulher, quase sempre mais jovem e bonita. Homens e mulheres reverberam essas histórias.

O caso mais recente envolvendo o suposto poder de convencimento feminino é o da futura primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja. A socióloga tem 56 anos de idade e é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde 1983. Começou a se relacionar com o presidente eleito em 2018 e com ele se casou em maio deste ano. Coube a ela organizar uma parte da posse presidencial, em 1.º de janeiro de 2023 – nada que diga respeito à cerimônia cívica, mas ao evento subsequente e que terá a participação de artistas.

No Brasil, a primeira-dama sempre recebe atenções. É uma figura julgada por sua postura, por suas roupas, por seu peso, por sua idade, por sua beleza, pelo que faz e pelo que diz, mas também pelo que não faz e pelo que não diz. O caminho mais fácil para se blindar de ataques é apelar à caridade, atividade preferencialmente exercida com trajes sóbrios e elegantes, muitos sorrisos e, sobretudo, de forma discreta e silenciosa.

Janja não se comporta dessa maneira – e rapidamente se tornou alvo. No mundo político, houve incômodo com o espaço que ela teria ocupado no gabinete de transição e com a suposta tentativa de influenciar na escolha dos ministros, crítica feita por interlocutores que evidentemente não se identificaram, mas que fizeram a informação chegar à imprensa. No mercado financeiro, o boato vai além. A socióloga seria a razão pela qual Lula passou a ignorar a importância da responsabilidade fiscal que defendia em seu primeiro mandato.

Mas o fato é que não há nada até o momento a desabonar a atuação da futura primeira-dama. Numa entrevista recente que concedeu ao Fantástico, ela disse que pretende trabalhar para ressignificar o papel da primeira-dama, e que duas de suas inspirações são Michelle Obama e Evita Perón. São mulheres com personalidades e trajetórias absolutamente distintas, mas talvez a única semelhança entre elas seja a de que nunca ficaram à sombra de seus maridos.

Nesse sentido, é bastante plausível que o futuro presidente considere sua opinião, assim como ouve a de muitos outros integrantes do PT e da base de partidos que o apoiou. Mas atribuir a Janja a responsabilidade pelos posicionamentos e pelas decisões do presidente eleito é dar a ela um peso maior do que ela tem.

Vale voltar a Macbeth. A obra não é um clássico sobre a fraqueza de um homem diante dos encantos das mulheres – algo que diminuiria a força do personagem e as reflexões que a tragédia shakespeariana é capaz de gerar tantos séculos depois. O que Shakespeare expõe em Macbeth são os aspectos sombrios inerentes ao comportamento humano.

Nem as bruxas nem Lady Macbeth foram determinantes para as ações que conduziram o general pelo caminho que ele optou por seguir. O sucesso de Macbeth nas batalhas despertou nele uma avidez que ele já tinha, e que estava contida enquanto tornar-se rei era algo impensável e inatingível. Tornar-se nobre em razão de tantas vitórias era algo até esperado para homens em sua posição. Se a mera expectativa de poder foi capaz de consumir todas as qualidades de Macbeth, é somente porque, no fundo, Macbeth não era verdadeiramente virtuoso.

O poder de convencimento das mulheres não deve ser menosprezado, tampouco supervalorizado. Dizer isso não diminui Janja em nada, mas dá a Lula a exata dimensão da responsabilidade pelo que diz e faz como presidente eleito. Pela escolha dos primeiros cinco ministros, Lula parece ter se pautado por um misto de lealdade, governabilidade e pragmatismo – marcas de sua carreira política há muitos anos. Quão convicto Lula está da necessidade de uma política fiscal mais austera para levar o País ao crescimento econômico? Quão convencido ele está a respeito da indicação dos demais ministros que farão parte de seu terceiro mandato? São perguntas importantes, para as quais Janja não é a resposta.

*

JORNALISTA

Opinião por Anne Warth