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Opinião|Mais pluralismo contra a ameaça democrática

Não basta que sejamos um sucesso na contenção de autocracias. É preciso ir além: reconstruir mecanismos de legitimação do pluralismo e de deslegitimação dos extremos

Por Rafael Poço e Rodrigo de Almeida

Ainda persiste no Brasil uma perigosa sensação de ameaça no ar, mesmo passados quase 20 meses da eleição presidencial que permitiu a passagem de poder de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva – a dupla que é força motriz das divisões entre as principais identidades políticas. A ameaça, no entanto, não parece mais vinda daquele estado de emergência eleitoral de 2022. O Varieties of Democracy, do V-Dem Institute, referência em pesquisa sobre democracia no mundo, chegou a colocar o Brasil como exemplo de contenção da autocratização, ao frear o avanço da autocracia representada pela extrema direita bolsonarista. Agora o sentimento é outro, mas igualmente temerário.

Enquanto artífices e executores do possível golpe são descortinados, há a percepção, por um lado, de que o risco democrático ainda está presente, sendo ele internacionalmente articulado; em paralelo, vê-se uma desconfiança crescente nas instituições, com críticas mais frequentes sobretudo ao Judiciário – justamente o poder, representado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pela defesa do processo eleitoral e responsabilização dos envolvidos na aventura golpista. O desconforto com a Justiça, para dizer o mínimo, pode ser constatado mesmo entre aqueles que se opuseram ao bolsonarismo: salvo raras exceções (como a deste Estadão), os críticos se mostram ainda de maneira comedida, mas inquietos com medidas excepcionais que, passado o período eleitoral, não mais se sustentariam e se converteriam em nova forma de arbítrio.

Segundo pesquisa AtlasIntel, mais da metade dos brasileiros diz não confiar no STF. Entre 51% e 56% dos entrevistados consideram “péssima” a atuação dos ministros em questões capitais, como a defesa da democracia, respeito ao Legislativo, profissionalismo e competência dos ministros, defesa dos direitos individuais, imparcialidade entre rivais políticos e combate à corrupção. Quase a metade (47%) acha que o Brasil vive uma “ditadura do Judiciário”. Apesar dos números, a timidez de muitos críticos ao Judiciário se justifica em parte pelo temor de transmitirem a ideia de que estão passando pano para golpista. Outros, por outro lado, temem ser mais críticos ao ambiente intoxicado e, com isso, serem vistos como avalistas de um sistema que, em tese, estaria beneficiando a esquerda lulista.

Esse é o efeito da polarização e do consequente ambiente democrático intoxicado: cada escolha, cada posicionamento político e comportamental, cada divergência (na crítica ou no elogio) acaba influenciada e modulada por nossas identidades. Se criticamos o STF, podemos ser “acusados” de fazer o jogo da extrema direita; se elogiamos ministros ou a instituição, podemos ser classificados como alguém “a serviço” da esquerda; se denunciamos abusos, podemos ser cadastrados simultaneamente na pasta do golpismo ou da “ditadura judicial”. A polarização promove esse jogo insidioso que gera desconfiança mútua e, por que não, autocensura como forma de proteger-se.

Não estamos sozinhos nessa encruzilhada. Seguimos a conjuntura global, na qual a polarização e a desinformação, que se retroalimentam com o extremismo, estão entre os maiores desafios democráticos. O Global Risks Report 2024, do World Economic Forum, aponta “informações falsas e desinformação” como o item de maior preocupação para 1,4 mil lideranças empresariais de 113 países para os próximos dois anos. A lista traz ainda “polarização social” em terceiro lugar, abaixo de “eventos climáticos externos”.

É hora de sairmos dessa encruzilhada, e isso exige exercitarmos nossa percepção sobre identidades distintas da nossa. Se revermos a percepção de ameaça que tanto a direita quanto a esquerda sentem, talvez possamos começar a reduzir os espaços de intolerância e hostilidade, assim como a ideia de uma política do tudo ou nada. O acirramento ocorre quando a política se divide em grupos distintos engajados em uma competição em que o vencedor “leva tudo”, uma política polarizada de identidades exclusivas, em que as divisões se dão não nos desacordos sobre determinadas questões, mas no que as pessoas representam. Ou seja, as diferenças (e a percepção de ameaça) se dão não pelo que as pessoas pensam, mas no que elas são. É o que a literatura especializada passou a chamar de polarização afetiva. Esse é um passo curto para que, na política, passemos facilmente do conflito natural de qualquer democracia à sensação de ameaça e ao medo.

Não basta que sejamos um sucesso na contenção de autocracias. É preciso ir além: reconstruir mecanismos de legitimação do pluralismo e de deslegitimação dos extremos. A moderação também é virtude, sobretudo como forma de correção das respostas excessivas e heterodoxas que todo ambiente radicalizado alimenta. A lição vale ao mesmo tempo contra o golpismo e contra os excessos de quem trabalhou para combatê-lo.

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PESQUISADORES DE POLARIZAÇÃO, EXTREMISMOS E PLURALISMO POLÍTICO, SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADO, DIRETOR-EXECUTIVO DO INSTITUTO GALO DA MANHÃ, IDEALIZADOR DO PROJETO DESPOLARIZE, COFUNDADOR DO INSTITUTO UPDATE, EX-APRESENTADOR DO PROGRAMA ‘POLÍTICA: MODO DE USAR’, DA GLOBONEWS; E JORNALISTA E CIENTISTA POLÍTICO, CONSULTOR DE COMUNICAÇÃO E POLÍTICA, COORDENADOR DO DESPOLARIZE

Opinião por Rafael Poço

Advogado, diretor-executivo do Instituto Galo da Manhã, idealizador do projeto Despolarize, cofundador do Instituto Update, pesquisador de polarização, extremismos e pluralismo político, foi apresentador do programa ‘Política: Modo de Usar’, da GloboNews

Rodrigo de Almeida

Jornalista e cientista político, consultor de comunicação e política, coordenador do projeto Despolarize, é pesquisador de polarização, extremismos e pluralismo político