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Opinião | Março é o mês do rim

É momento de ampliar a conscientização sobre a doença renal crônica, popularizar nossas ferramentas diagnósticas e expor a crise humanitária que acomete pacientes em diálise no SUS

Por José A. Moura Neto

Março é o mês em que é celebrado o Dia Mundial do Rim – que não ocorre numa data fixa, mas sempre na segunda quinta-feira do mês. Em 2024, neste dia 14. Em 2023 foi no dia 9 e em 2025 cairá em 13 de março. Mudam os dias, as cores e o slogan da campanha internacional, mas alguns problemas persistem, ou se amplificam, com o passar dos anos.

Os rins são órgãos fundamentais para a vida. Participam da regulação do organismo e filtram as impurezas do sangue, além de também desempenharem uma importante função hormonal. Algumas doenças podem afetar os rins, e a doença renal crônica é uma das condições mais relevantes, que afeta 1 em cada 10 indivíduos. No Brasil, estima-se que mais de 20 milhões de pessoas tenham a doença, causada principalmente por diabetes e pressão alta.

A doença renal crônica pode ser assintomática em seus estágios iniciais e intermediários; por isso muitos pacientes desconhecem o seu diagnóstico. Falta de ar, inchaço, diminuição da produção de urina, fadiga, sonolência e confusão mental podem ser alguns dos sintomas, que aparecerão apenas quando a função dos rins já está mais comprometida.

A chamada falência renal ocorre apenas no estágio avançado da doença, quando terapias como hemodiálise, hemodiafiltração, diálise peritoneal ou transplante tornam-se necessárias para substituir a função dos rins. Mais de 150 mil pessoas com doença renal crônica realizam terapias dialíticas no Brasil, e 80% delas são atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esses números crescem ano após ano.

Em resumo: trata-se de uma doença prevalente, de curso silencioso, potencialmente grave, que tem como principais fatores de risco duas condições cada vez mais frequentes na população e que deixa milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade. São ingredientes que tornam a doença renal crônica um problema de saúde pública no Brasil. E, para piorar, a hemodiafiltração, uma modalidade terapêutica recentemente implementada no País e com benefícios bem estabelecidos, ainda não está disponível para pacientes do SUS. Apenas pacientes que têm planos de saúde privados têm acesso a essa tecnologia, aprofundando as disparidades assistenciais num cenário de iniquidade que vai de encontro aos princípios do sistema de saúde brasileiro.

Em 2023, pela primeira vez, o termo crise humanitária foi usado para descrever a situação que acomete pacientes em diálise no SUS, com dificuldade no acesso adequado ao tratamento, enfrentando desassistência e falta de vagas na rede pública. O setor sofre com uma defasagem de financiamento que vem sendo estabelecida, e amplificada, ao longo de décadas de descaso em que estivemos à mercê de políticas de saúde que negligenciaram a gravidade do cenário e concederam poucos reajustes no valor pago à diálise pelo SUS, insuficientes para fazer frente à escalada inflacionária de custos no setor.

Após pressão da Sociedade Brasileira de Nefrologia, de associações de pacientes renais e clínicas de diálise, da imprensa e da recém-criada Frente Parlamentar da Nefrologia, o governo concedeu um reajuste em 2023. Entretanto, o valor foi considerado insuficiente e contemplou apenas a modalidade terapêutica da hemodiálise – sem o estabelecimento de uma linha de cuidado integral ao paciente com doença renal no SUS, que inclua prevenção e outras formas de tratamento, como o transplante e a diálise peritoneal. O novo valor foi para R$ 240 por sessão, inferior ao custo médio estimado por sessão, de R$ 302. Enquanto alguns Estados discutem programas de cofinanciamento da terapia renal substitutiva, essa iniciativa se mostra ainda limitada e incapaz de resolver a crise nacional.

Apesar do panorama desafiador, várias ações podem ser realizadas no nível individual em nossa comunidade, principalmente no que tange a esforços de divulgação de uma doença ainda pouco conhecida.

Exames acessíveis e confiáveis estão disponíveis no Brasil, inclusive na rede pública de saúde. O exame simples de urina e a dosagem da creatinina no sangue podem detectar a doença mesmo antes de sintomas se manifestarem. A creatinina é uma substância presente no sangue de todo indivíduo, que serve como marcador substituto para avaliar a função renal: caso esteja alta, ou em elevação, o diagnóstico provável é de doença renal. Sua importância está na sua simplicidade de interpretação e, principalmente, na acessibilidade. E é este o tema do Dia Mundial do Rim: Saúde dos Rins e Exame de Creatinina para Todos. Popularizar o exame simples de urina e da creatinina é essencial para melhorar o diagnóstico e, consequentemente, o acesso ao tratamento de pacientes com problemas renais. Pacientes com fatores de risco devem realizar o rastreamento para doença renal crônica; e indivíduos com histórico familiar, idade superior a 60 anos, tabagistas e pessoas com hipertensão arterial, diabetes, obesidade e doença cardiovascular são aqueles que apresentam maiores riscos.

Todo mês é o mês do rim, mas março é o mês do Dia Mundial do Rim. É o momento de debater a nefrologia e apresentar nossas virtudes, nossos obstáculos, realidades, pautas e demandas. Uma oportunidade de ampliar a conscientização sobre a doença renal crônica, popularizar nossas ferramentas diagnósticas – a creatinina e o exame simples da urina – e expor a crise humanitária que acomete pacientes em diálise no SUS.

Precisamos discutir soluções imediatas para essa crise, que vão além do financiamento adequado e que passam inevitavelmente pelo estabelecimento da equidade no tratamento e de uma linha de cuidado integral aos pacientes com doença renal crônica em todos os estágios. A saúde é um direito universal no Brasil e cabe ao Estado garantir o tratamento adequado dos pacientes com doenças renais.

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PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA

Opinião por José A. Moura Neto

Presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia