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Opinião|Modelo de reembolso e defasagem da tabela do SUS impedem acesso a novas tecnologias em radioterapia

Com planejamento e foco no paciente, é possível e sustentável oferecer o melhor tratamento, com tecnologia adequada, para toda a população

Por Gustavo Nader Marta

A radioterapia é um dos três pilares do tratamento de pacientes com câncer, ao lado da cirurgia e das terapias sistêmicas com medicamentos. Essa modalidade terapêutica permite emitir radiação diretamente no tumor, sempre buscando poupar ao máximo os tecidos saudáveis ao redor. Em 85% dos casos, a radioterapia tem um propósito curativo e, nos outros 15%, paliativo. Pelo menos sete em cada dez pacientes com câncer recebem, em algum momento, a indicação de radioterapia. Nos últimos anos, temos visto uma significativa evolução tecnológica no setor. Cada vez mais, a radioterapia se torna menos tóxica, resultando em menos riscos de efeitos secundários durante e após o tratamento.

No que se refere às diferentes técnicas disponíveis, o cenário ideal minimamente aceito é a aplicação da radioterapia 3D conformada, que emprega tecnologia computacional para identificar precisamente a largura, altura e profundidade do alvo, atingindo-o com feixes de radiação. A evolução dessa técnica 3D é a Radioterapia por Intensidade Modulada (IMRT), que usa tecnologia para moldar os feixes de radiação exatamente ao formato do tumor. O objetivo é aumentar ainda mais a precisão do tratamento, resultando, muitas vezes, na redução pronunciada dos efeitos colaterais e tornando o tratamento mais tolerável para os pacientes.

Outra técnica moderna e eficaz é a radioterapia estereotáxica, que tem a capacidade de direcionar a radiação de forma extremamente precisa, atingindo basicamente apenas o tumor e preservando ao máximo os tecidos saudáveis ao redor. Além disso, a Radioterapia Guiada por Imagem (IGRT) utiliza imagens detalhadas para aumentar a precisão do tratamento. Imagens em tempo real são obtidas durante cada sessão para verificar a localização exata do tumor, permitindo ajustes precisos antes e durante o tratamento, aumentando, assim, a segurança e a eficácia do tratamento. Essas tecnologias estão disponíveis no Brasil, mas, quando o assunto é acessibilidade no Sistema Único de Saúde (SUS), a situação é bem diferente.

É difícil aceitar que, embora 70% dos pacientes oncológicos recebam indicação de radioterapia, essa essencial terapia represente apenas cerca de 5% do custo unitário do tratamento por paciente oncológico no contexto do SUS. Não faltam evidências de custo-efetividade para uma possível ampliação do acesso à radioterapia de alta tecnologia no SUS. Na saúde suplementar, a IMRT foi incorporada para o tratamento de cânceres de cabeça e pescoço, próstata, pulmão, esôfago e mediastino.

Esse gargalo afeta os pacientes mais vulneráveis, que sofrem na fila ou não recebem o tratamento adequado. Quando o paciente do SUS recebe a indicação de radioterapia, mas não é tratado ou recebe a terapia inadequada, há a necessidade de buscar outras formas de tratamento, muitas vezes menos eficazes para o seu quadro clínico e, potencialmente, mais custosas para a sua saúde e para a sustentabilidade econômica do País. Um entrave significativo para a modernização dos serviços de radioterapia no Brasil e a acessibilidade às novas tecnologias é o modelo de reembolso. Diferentemente de outros processos de incorporação tecnológica na rede pública, a radioterapia é paga por pacote. O governo tem uma tabela que não considera a técnica usada, o que significa que o serviço que oferece a técnica mais antiga (como, por exemplo, a convencional 2D) recebe o mesmo valor daquele que investiu em tecnologia mais recente. Na prática, paga-se pelo tipo de tumor, sem levar em consideração se o paciente recebeu a forma mais rudimentar ou moderna de radioterapia.

Esse modelo de pacotes por código da doença foi implementado no Brasil em fevereiro de 2019. Apesar de ter simplificado o faturamento dos tratamentos, otimizado a auditoria dos serviços e coletado informações estatísticas, ele ainda está distante de cobrir os custos com a radioterapia na perspectiva do SUS. Além disso, a tabela do SUS não foi revisada adequadamente ao longo dos anos. Em 2012, o pagamento por tratamento era de US$ 1.567, caindo para US$ 831 em 2022, uma queda de 43% em uma década, apesar de uma inflação acumulada de 80% e uma desvalorização do câmbio de 150%.

Em moeda nacional, também houve aumento de preço relacionado a elementos cambiais e à valorização do dólar. Um estudo da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) e da Fundação Dom Cabral mostra que, para atingir a recomendação internacional de 600 pacientes tratados por acelerador linear por ano, o ticket médio deveria ser de R$ 12,5 mil, o que contrasta com o famigerado ticket médio atual praticado de R$ 5,5 mil. A responsabilidade por um custeio adequado do SUS é tripartite. Com planejamento e foco no paciente, é possível e sustentável oferecer o melhor acesso de radioterapia, com tecnologia adequada, para toda a população.

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MÉDICO RADIO-ONCOLOGISTA, PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE RADIOTERAPIA (SBRT), É PROFESSOR LIVRE-DOCENTE PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FMUSP)

Opinião por Gustavo Nader Marta

Médico radio-oncologista, presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), é professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)