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Opinião|Morador de rua? Longe de mim...

Em nome de uma Sé com um visual livre de habitantes e de seus precários tetos, centenas de homens, crianças, velhos, mulheres grávidas ficam durante doze horas perambulando pela cidade

Por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Todos nós estamos acostumados a tomar contato com as mais variadas situações que a vida proporciona. São eventos ligados ou não à conduta humana. Aqueles provocados pela natureza, em regra, surgem como catástrofes sem que o homem tenha como se precaver e evitar os males decorrentes. Ela, a natureza, é mais forte, e parece que ainda não percebemos.

Com relação à conduta humana, embora, como disse, no curso de nossas vidas tenha desfilado um significativo rol de estranhos e inusitados acontecimentos, nós ainda somos colhidos por novos e surpreendentes eventos.

No meu caso, aquilo que mais me causa espanto, surpresa e indignação com o ser humano são as suas opiniões e os seus posicionamentos revelados verbalmente ou por escrito. Na verdade, muitos desses pensamentos são obviamente fruto da formação cultural, do meio no qual vive e das influências recebidas. Assim mesmo, não se pode afastar a contribuição de cada qual para a formação de suas ideias. Por maior que sejam as influências operadas, o homem é dotado de raciocínio, sentimento e livre-arbítrio para analisar, valorar e escolher a que lhe pareça ser a mais adequada opção no plano das ideias e da ação concreta.

As manifestações que mais me chamam a atenção não são as que revelam tendências ideológicas, políticas, preferências culturais, literárias, musicais, clubísticas e tantas outras. Não. O chocante para mim são aquelas que traduzem posições éticas e humanitárias. São as que deveriam pairar no campo do humanismo, da solidariedade, do amor ao próximo, da tolerância e da compreensão. São declarações nesses setores que nos possibilitam conhecer o interior de alguém. Seus sentimentos, sua capacidade de amar o próximo, mas também seus preconceitos, sua insensibilidade e seu egoísmo.

Pois bem, outro dia comentei com um conhecido sobre o absurdo projeto apresentado na Câmara de Vereadores de São Paulo que proibia que se desse alimento aos moradores de rua sob pena de pagar-se uma multa. Pasmem, esse conhecido afirmou ser boa a iniciativa, pois na medida que se desse comida os moradores não sairiam das ruas. Na sua mesquinha visão, os sem-teto assim estão por vontade própria, por livre escolha. Parece achar que tinham casas e as abandonaram voluntariamente. Levaram poucos pertences, desprezaram todo o resto que possuíam e foram habitar pontes, viadutos e calçadas das nossas cidades. E mais, se fizeram acompanhar dos filhos, dos pais, dos velhos avós e dos demais que com eles moravam ou que também abandonaram os seus lares. Todos escolheram as nossas aprazíveis ruas e avenidas, pois não viviam bem abrigados em suas moradas.

A insensibilidade, o egoísmo e a obtusa percepção da realidade por parte do meu conhecido atingem também uma parcela daqueles que jamais tiveram que enfrentar as agruras e os sofrimentos proporcionados por uma desigualdade social cruel e trágica. A amarga realidade passou longe desses privilegiados.

Muitos de nós somos dotados de senso humanitário e de solidariedade para com o próximo, eles, ao inverso, desprovidos que são desses sentimentos, possuem como foco único a si próprios. O que existe ao redor não os incomoda. Penso e cuido de mim, é o que basta.

Os sem piedade e sem amor, a não ser o próprio, imaginaram que poderiam ser eles os arruinados, os desafortunados, os sem-teto? Muito provavelmente essa hipótese nunca lhes ocorreu. É inimaginável. Eles se sentem superiores, imunes às tragédias, eleitos e abençoados pelo Criador, sendo inadmissível que trágicas ocorrências os atinjam. Talvez para não aventarem tal possibilidade pensem como o meu conhecido: retirando os ocupantes das ruas eu não corro o risco de lembrar que sou humano e, portanto, vulnerável e sujeito às amarguras que a vida pode proporcionar.

A indiferença desumana desses homens chega a causar natural repulsa por parte daqueles que se preocupam e se comovem com o outro. A impressão passada pelo meu conhecido foi a de que a retirada das ruas era o que importava, mesmo que as pessoas de lá fossem para o cemitério. Que ficassem longe dos seus olhos, mesmo que fosse para morrer de fome, porque não mais poderiam ser alimentadas.

Não chega a esse extremo, mas a Prefeitura de São Paulo adota uma providência de “higienização” da Praça da Sé que igualmente afasta da vista os que lá escolheram morar. As barracas todos os dias são desmontadas, a praça é lavada e à noite são recolocadas. Em nome de uma Sé com um visual livre de habitantes e de seus precários tetos, centenas de homens, crianças, velhos, mulheres grávidas ficam durante doze horas perambulando pela cidade, literalmente sem eira nem beira.

Ao meu interlocutor e a todos os acometidos da sua cegueira, desapiedados e carentes de humanidade, desejo lembrar que os moradores de rua são cidadãos que foram jogados ao léu e tentam sobreviver. Uma mão estendida, seja para dar alimento, seja para construir um teto, é garantir seus direitos e representará amor, e é também de amor que eles necessitam.

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ADVOGADO

Opinião por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

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