O Brasil tem passado já há alguns anos por disfunções institucionais que até os dias atuais têm cobrado o seu preço. As manifestações de 2013 em razão do agravamento do quadro político-econômico; a ausência de propostas concretas e de lideranças nesses anseios populares; a catalisação dessa efervescência por discursos populistas e antissistema levaram a uma situação de desregulação institucional e de riscos à própria democracia.
Ninguém duvida da máxima de que o poder não admite vácuo. Igualmente verdadeira é a hipótese de que, na fragilidade de determinado Poder, nova ordem se arvora em desrespeito e até violência, seja ficta ou real.
Todo esse movimento de indignação social acarretou uma crise de representatividade na classe política, seja do Legislativo, seja do Executivo. O saber técnico do Judiciário, aquele supostamente incólume às influências ideológicas e políticas, foi o escolhido.
Integrantes do sistema de Justiça aprenderam a receita de como deveriam agir empolgando as massas e os meios de comunicação. O discurso enfadonho do Judiciário transformou-se em série televisiva com linguagem acessível e frases curtas, previamente negociadas com os meios de comunicação, que possuíam gabinetes com ar refrigerado e cafezinho na antessala do poder.
Assim nascia a Lava Jato. Catapultando a voz indignada das ruas e fornecendo à população um senso de pertencimento ao ver todos sendo presos antes mesmo da demora entediante dos processos.
O tempo da ansiedade popular era o da divulgação, e não o da investigação. Prendia-se sem processo, condenava-se publicamente. Posteriormente descobriu-se que, para incrementar o desvio funcional, não havia apenas o desrespeito ao tempo e forma do que era decidido, mas tudo era conversado e decidido entre acusação e julgador antes de tudo ir para os autos. O mutualismo do rolo compressor da violência institucional e comunicação estava em pleno funcionamento.
Com a esperteza populista da extrema direita antidemocrática, aliada ao interesse daqueles que haviam criado a receita Lava Jato, todos quiseram uma beirada de poder. O que esses ingênuos não contavam era que o poder totalitário cabe em poucas mãos.
Criou-se um racha entre os populistas de extrema direita “políticos” e os supostos técnicos atores do Poder Judiciário. Passou-se à tentativa insana de ruptura democrática, que, no final do dia, teve de ser contida a duras penas pelo Supremo Tribunal Federal, numa espécie, inclusive, de autocontenção.
Ocorre que todo excesso de poder gera desgaste. Certo ou errado – difícil estabelecer o ambiente político da necessidade de medidas de contenção –, começa-se a conflitar com barreiras técnicas garantidoras dos direitos individuais, essas sim inscritas em nossa Constituição e passíveis de insofismável accountability.
O Supremo Tribunal Federal assegurou a estabilidade política e tem contribuído para a estabilidade econômica do País. Na primeira, coibiu a disseminação de fake news, conduziu investigações e protagonizou a responsabilização pelo 8 de Janeiro. Em relação à segunda, tem impedido o Congresso Nacional de gerir recursos de forma indiscriminada sem qualquer controle e fiscalização ao proibir a farra das emendas parlamentares, por exemplo.
A regra do jogo está, de forma trôpega, é verdade, sendo respeitada, com a exceção dos mesmos alucinados que devem continuar tendo o seu local de expiação na repressão estatal. Contudo, movimento inverso deve começar a ser feito.
A confiança nos outros Poderes e a regularidade da atividade política deve voltar a ser valorizada, reconhecendo-se de forma uníssona o Supremo Tribunal Federal como essencial guardião da Constituição. Voltar à inércia jurisdicional, de ser a instituição provocada, para, com a razão e a clarividência de seus membros, tomar decisões firmes e acertadas.
Esse recuo não é fácil, é verdade. Pode demonstrar fraqueza. Mas é necessário e urgente. A reacomodação, por mais desafiadora que possa parecer, reafirmará ao Supremo Tribunal Federal o respeito e a firmeza com que sempre agiu na solução dos conflitos mais importantes e urgentes da Nação. Deixar o dia a dia das idiossincrasias sociais trará o tempo e a razão de que o tribunal precisa.
Indubitavelmente teremos uma relação entre os Poderes mais harmônica, embora as feridas jamais deixarão de existir. As cicatrizes serão a marca de um nebuloso capítulo da nossa história, que nos ajudarão a refletir e escolher uma caminhada de respeito, racionalidade e democracia.
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ADVOGADO CRIMINAL, CODIRETOR DA SÉRIE ‘REPÚBLICA DOS JUÍZES’, CONSELHEIRO DO INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA (IDDD), FOI CONSELHEIRO DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (CNMP/MJ) E PRESIDENTE DO IDDD