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Opinião | Na pandemia do jogo, quem ganha sempre é a banca

É importante que os envolvidos no debate sobre as ‘bets’ entendam necessidade de tratamento em saúde mental para casos de transtornos relacionados ao jogo

Por Ronaldo Laranjeira

Na saúde, um cenário de endemia é aquele no qual uma doença tem recorrência em uma determinada região, mas não apresenta aumento significativo de casos. No entanto, o que observamos hoje no mundo em relação ao jogo é uma realidade extremamente preocupante, uma vez que as chamadas “bets” estão cada vez mais presentes nas casas e nas famílias brasileiras.

Um levantamento do Banco Central divulgado em agosto deste ano reforça essa perspectiva, ao apontar que cerca de 24 milhões de pessoas físicas realizaram, naquele mês, no mínimo um pagamento por meio do Pix para empresas que administram sites e aplicativos de jogos de apostas online. Somente neste ano, a previsão é de que os brasileiros percam entre R$ 216 bilhões e R$ 252 bilhões.

As novas tecnologias transformaram o ato de apostar por meio do acesso facilitado às plataformas online, disponíveis em celulares, tablets e computadores. Essa velocidade e disponibilidade permitem que os cidadãos joguem com uma frequência muito maior do que os apostadores que frequentam cassinos ou locais físicos. Mas a dependência pode atingir esses dois perfis na mesma intensidade.

O que impulsiona o cenário das “bets” no Brasil é, em primeiro lugar, a desigualdade social, que faz com que as pessoas busquem nessas plataformas uma fonte de renda fácil e rápida para os problemas econômicos com os quais precisam lidar. Além disso, em muitos casos, os jogos de aposta acabam se tornando uma fuga da realidade para pessoas que convivem com frustrações ou quadros de ansiedade.

A “vantagem” psíquica das casas de apostas online é que o cérebro responde quase que imediatamente ao estímulo causado pela possibilidade de ganhar dinheiro rápido e fácil por meio dessas plataformas online. Entretanto, é justamente essa resposta rápida que gera no apostador uma fissura por novas experiências, cada vez mais e mais. Esses picos de adrenalina ocorrem, na maioria das vezes, entre muitas derrotas e apenas algumas vitórias, mas acabam por manter os jogadores imersos no pensamento ilusório de que irão ganhar se seguirem apostando.

O transtorno do jogo é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma doença desde 1979. Em 2018, a entidade passou a considerar também o uso abusivo de jogos eletrônicos como uma patologia, embora as discussões sobre tratamentos e possibilidade da cura da dependência em apostas ainda sejam rasas tanto no Brasil quanto no mundo.

As consequências do jogo patológico na vida de um apostador afetam não somente as questões financeiras, mas impactam diretamente as relações sociais e familiares, além de estarem relacionadas a casos de depressão, dependência em álcool e drogas, desorganização pessoal, e até mesmo ao desenvolvimento de outras doenças mentais que podem elevar o risco de suicídio.

É importante ressaltar também que a economia do País é afetada por essas casas de apostas sem que elas sejam responsabilizadas economicamente pelos prejuízos causados, visto que muitos apostadores acabam deixando de comprar produtos essenciais para o dia a dia, como alimentos e roupas, para apostar o valor nos jogos online. Não raro, essas pessoas recorrem a empréstimos junto a amigos e familiares, instituições financeiras e até mesmo agiotas.

O Supremo Tribunal Federal (STF) quer mensurar os impactos das apostas online no País com o intuito de estudar a regulação desse modelo de negócio em território nacional. Para além das opiniões técnicas dos economistas, juristas e representantes do poder público, é essencial que pessoas envolvidas no cuidado de apostadores, como os profissionais de saúde mental e familiares, sejam escutados.

A normatização das “bets” no País deve levar em conta a epidemia de apostas online que atingiu a população brasileira, e a pandemia mundial que se instalou nessa área. A arrecadação com os impostos gerados pelas casas de apostas deve prever, assim como fez a Inglaterra em seu processo de padronização dessa modalidade, um aporte expressivo para oferecer suporte às pessoas que se tornem dependentes em jogos.

É importante que os políticos e especialistas envolvidos nesse debate entendam a necessidade de tratamento e acompanhamento especializado em saúde mental para os casos de transtornos relacionados ao jogo. É necessário também que existam campanhas de conscientização sobre essas apostas, para contrapor informações ilusórias criadas, sobretudo nos últimos tempos, por influenciadores digitais.

Já estamos pagando o preço da expansão desenfreada das apostas. A cada clique em uma roleta de cassino online ou aplicativo de “bet” esportiva, perdemos um pouco, social e emocionalmente. Na pandemia do jogo, quem ganha é sempre a banca.

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MÉDICO PSIQUIATRA, PROFESSOR TITULAR DA UNIFESP, É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAULISTA PARA O DESENVOLVIMENTO DA MEDICINA (SPDM)

Opinião por Ronaldo Laranjeira

Médico psiquiatra, professor titular da Unifesp, é presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM)