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Opinião|Na sala de aula, o espectador de cinema se forma e se transforma

Para que essa transformação seja mais efetiva, os Ministérios da Cultura e da Educação precisam criar políticas que garantam o acesso a produções audiovisuais de qualidade nas escolas, além de capacitar educadores para utilizá-las

Por Vanessa de Araújo Souza

O Brasil enfrenta hoje uma contradição preocupante: a produção audiovisual nacional cresce e conquista reconhecimento internacional, mas o acesso às salas de cinema é limitado para grande parte da população. A escassez desses espaços, particularmente em regiões distantes dos grandes centros urbanos, impacta diretamente a formação cultural dos brasileiros. São apenas 3.468 salas, distribuídas por 5.570 municípios, o que se traduz em uma média de 40% de brasileiros residentes em áreas sem acesso a salas de exibição. Como consequência, no ano de 2023, foram vendidos apenas 3,71 milhões de ingressos para filmes nacionais, segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Por outro lado, a rede educacional brasileira é composta por 47,3 milhões de estudantes, distribuídos em 178,5 mil escolas, conforme indica o Censo Escolar de 2023. Portanto, se esse problema estrutural impede que as pessoas cheguem ao cinema, por que não aproveitar as escolas como um complexo de salas, onde as obras encontram seu público ainda em fase de formação?

Integrar cinema e educação representa uma oportunidade valiosa para transformar a experiência de aprendizado dos estudantes. Com o apoio do professor, as obras podem promover a diversidade, a inclusão e a reflexão crítica em sala de aula, além de contribuir para a formação de cidadãos mais conscientes e engajados com as questões sociais e ambientais do nosso tempo. A utilização desses recursos, portanto, estimula discussões ricas e aprofunda o aprendizado sobre temas complexos. Um documentário sobre a Amazônia, por exemplo, pode despertar a consciência ambiental nos alunos; uma animação sobre a história do Brasil torna o estudo mais divertido e envolvente; enquanto curtas de ficção científica incentivam a reflexão sobre o futuro da humanidade e o papel da tecnologia.

Vale lembrar que o conteúdo multimídia já está presente de forma constante no cotidiano das pessoas, com 82% do tráfego da internet composto por vídeos. Sendo assim, integrar o audiovisual ao ensino formal não se trata apenas de uma tendência, mas de uma necessidade: preparar crianças e jovens para enfrentar os desafios do século 21.

A Lei 13.006/2014 evidencia isso ao determinar a exibição de filmes nacionais nas escolas por, no mínimo, duas horas mensais. No entanto, a realidade demonstra uma lacuna significativa entre a norma e sua implementação, com uma defasagem de aplicação na maioria das instituições de ensino. Nesse contexto, são importantes iniciativas como as que oferecem gratuitamente conteúdos audiovisuais de qualidade, que abordam desde a história e a cultura brasileiras até temas globais contemporâneos, para professores e estudantes do ensino médio matriculados na rede pública. Algumas obras disponíveis demonstram o potencial do audiovisual em cumprir a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas.

O futuro do audiovisual brasileiro se constrói dentro das salas de aula. É nesse espaço que cultivamos não apenas novos cineastas, mas também um público capaz de consumir as obras não só como entretenimento, mas também como ferramenta de transformação social. Além disso, ao ter acesso a diferentes gêneros e formatos cinematográficos desde a infância, os alunos desenvolvem um olhar mais analítico e reflexivo sobre o mundo, tornando-se espectadores mais exigentes e conscientes.

Porém, para que essa transformação seja ainda mais efetiva, os Ministérios da Cultura e da Educação precisam trabalhar em conjunto, criando políticas que garantam o acesso a produções audiovisuais de qualidade nas escolas, além de capacitar educadores para utilizá-las de maneira eficaz. Uma proposta viável seria o Ministério da Educação (MEC) atuar no licenciamento de conteúdos audiovisuais financiados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav), visando a disponibilizá-los nas escolas brasileiras através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Isso poderia ser realizado em parceria com produtores independentes e canais superbrasileiros, como o Canal Curta!, Canal Brasil, Cine Brasil TV, Prime Box Brazil e TV Rá Tim Bum, e culturais, como Futura e TV Cultura. Esses canais são os principais licenciadores de conteúdo audiovisual independente brasileiro e, nos últimos anos, desempenharam um papel crucial ao garantir que uma ampla variedade de vozes e histórias de diferentes regiões do País fosse apresentada ao público.

É importante ressaltar que um público formado na escola é mais propenso a frequentar as salas de cinema. Portanto, apenas levar o cinema para a sala de aula não é suficiente; a comunidade escolar precisa também ocupar as salas de exibição. É essencial promover eventos que incentivem a presença dos alunos e suas famílias nos cinemas locais. Organizar sessões para as turmas, em que os estudantes possam ir ao cinema juntos, além de realizar exibições comunitárias seguidas de debates, pode fortalecer os laços entre todos e criar um verdadeiro senso de pertencimento em torno da sétima arte. Só assim o Brasil poderá construir um futuro mais conectado e consciente, em que cinema e educação coexistam de maneira simbiótica, enriquecendo a formação cultural e intelectual de seus cidadãos.

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Opinião por Vanessa de Araújo Souza

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