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Opinião|Não queremos apenas mais médicos. Queremos que sejam competentes

A partir do Decreto 11.999, tememos decisões da Comissão Nacional de Residência Médica que não sejam embasadas pelos nobres propósitos da formação do médico especialista

Por César Eduardo Fernandes

Ao longo de quase 50 anos de atuação como médico e professor de Medicina, tive alguns poucos momentos em que as expectativas de melhoria e avanços na assistência aos nossos pacientes pareciam possíveis. Claro que essa percepção estava, diretamente, ligada às políticas públicas de saúde e à formação de médicos e especialistas vigentes entre nós.

Creio, no entanto, que foram lampejos da cabeça de um sonhador, que nunca se concretizaram. Ao contrário, a assistência à população só tem piorado pelos equívocos na elaboração das políticas de saúde, na política de provisão de médicos nas áreas mais carentes do País e, nos últimos dez anos, na política irresponsável de criação desenfreada de novas escolas de Medicina sem condições de formar novos médicos e sem qualquer similaridade tresloucada observada em qualquer lugar do planeta.

Desde o dia 17 de abril de 2024, a situação se agravou drasticamente. Naquela data, um decreto presidencial muito preocupante foi proposto e esse fato não pode passar despercebido pela população brasileira, em última análise, a grande atingida por essas políticas equivocadas relacionadas à formação médica. Eu me refiro à publicação do Decreto n.º 11.999, que dispõe sobre a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) e sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de programas de residência médica.

Um retrocesso profundo em minha opinião, bem como na de todas as entidades médicas sérias do País.

Nitidamente, o decreto, em um dos seus pontos mais nevrálgicos, aponta para um inquietante desequilíbrio na composição da CNRM, que passa a contar com número expressivamente maior de representantes do governo federal, o que afetará a equidade na tomada de decisões em favor das intenções do governo e em detrimento de posicionamentos técnicos, científicos e éticos apontados pelas entidades médicas.

Um outro tópico, o mais ilógico do decreto, é a retirada da obrigatoriedade de que os membros indicados pelos ministérios para compor a CNRM sejam médicos. Um absurdo.

Tememos, a partir desse novo decreto, decisões da CNRM que não sejam embasadas pelos nobres propósitos da formação do médico especialista, que, por óbvio e defendido pelas unidades formadoras, precisa, necessariamente, adquirir as competências aprovadas por cada uma de nossas sociedades de especialidades, bem como precisa, ao longo de seu processo formativo, obter autonomia para realização, por si só, dos procedimentos que caracterizam cada uma das especialidades médicas.

Não se pode conferir o título de especialista a médicos que não seguiram, rigidamente, o estabelecido em cada programa oficial de residência médica do Ministério da Educação (MEC).

Quero reforçar aqui que a publicação do decreto aconteceu sem consulta prévia aos membros da atual CNRM e às lideranças das principais entidades médicas do País, que sempre defenderam a qualificação da residência médica. Um dos princípios democráticos mais relevantes é o que preconiza ouvir os segmentos organizados e constituídos da sociedade civil, nesse caso, representados pelas entidades médicas existentes no País. Pois bem, esse princípio, sustentáculo da prática democrática, foi sumariamente ignorado. Decisão apenas do governo sem participação alguma da sociedade organizada.

É um momento gravíssimo. Daí a necessidade premente da união das entidades médicas e da sociedade brasileira como um todo. É a formação do especialista médico que está em risco e, por conseguinte, a segurança de cada paciente que, no futuro, precise de assistência médica especializada com qualidade e competência.

Nós da Associação Médica Brasileira (AMB) temos como dever e princípio defender a dignidade do exercício da medicina e a assistência de qualidade à saúde da população. Congregamos 27 representações estaduais, incluindo o Distrito Federal, e 54 sociedades de especialidades. Temos mais de 40 mil associados em todo o País. Portanto, não podemos nos furtar ao nosso papel de defesa ampla e irrestrita da formação de médicos gerais e de especialistas qualificados e resolutivos. Não queremos apenas mais médicos. Queremos, sobretudo, que sejam competentes.

Estamos inseguros, pois há distorções que comprometem o papel técnico da CNRM, claramente em detrimento de uma visão política de governo, e não de Estado.

Por fim, outra questão não menos preocupante refere-se à proposição de uma Câmara Recursal dentro da CNRM, a partir da qual se retira o poder decisório dos membros titulares da comissão e amplia o poder de influência do governo nas decisões. Em resumo, o que for decidido pelos membros da CNRM pode, caso não aceito por um de seus componentes, ser remetido à Câmara Recursal, onde, pela sua composição exclusiva de membros do governo federal, sempre prevalecerá, claro, a posição defendida pelo governo, e não a vontade dos médicos embasada, sempre, por critérios eminentemente técnicos e científicos.

Portanto, é o momento de nos unirmos ainda mais. Devemos buscar, junto com a sociedade civil, todas as instâncias decisórias para mostrar nossa indignação e lutar com todas as nossas forças, à exaustão, para reverter esse nefasto decreto presidencial.

A medicina no Brasil precisa avançar, e não retroceder. A população espera e merece isso!

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MÉDICO GINECOLOGISTA E OBSTETRA, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA (AMB), PROFESSOR TITULAR DA DISCIPLINA DE GINECOLOGIA DA FACULDADE DE MEDICINA DO ABC, FOI PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA DE SÃO PAULO (SOGESP) E DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA (FEBRASGO)

Opinião por César Eduardo Fernandes

Médico ginecologista e obstetra, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), professor titular da disciplina de Ginecologia da Faculdade de Medicina do ABC, foi presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo (Sogesp) e da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)

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