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Opinião|Neutralidade ou não beligerância diante da guerra na Ucrânia?

Que escolhas podem fazer aqueles que defendem o respeito pelos direitos humanos e a democracia, o multilateralismo e a salvaguarda dos equilíbrios ambientais, o desenvolvimento integrado e sustentável?

Por João Paulo Avelãs Nunes

Depois do regresso do Brasil a uma situação de alguma normalidade democrática, é possível verificar que Brasília e Lisboa parecem ter adotado atitudes diferentes relativamente à guerra que, desde fevereiro de 2022 – ou desde março de 2014 –, se verifica na Ucrânia. Trata-se de um conflito militar decorrente de uma brutal e não provocada agressão da parte da ditadura vigente na Federação Russa. O Brasil seria neutro, enquanto Portugal assumiria a atitude de Estado não beligerante aliado da Ucrânia (do regime democrático ucraniano). Tendo em conta tanto o fato de a Federação Russa ser uma das duas potências nucleares globais quanto a presente conjuntura de crise de democracias e do multilateralismo, penso que se justifica considerar esta problemática com maior atenção.

Começo por lembrar que, quando utilizamos a expressão “guerra na Ucrânia”, essas palavras significam transformações dramáticas na vida de dezenas de milhões de seres humanos. Deparamo-nos, nomeadamente, com mortes em resultado de operações militares e com assassinatos, com feridos e com traumatizados, com pessoas violadas – sobretudo mulheres e crianças do sexo feminino – e com pessoas torturadas, com rapto de crianças (depois entregues para “reeducação e adoção”) e com deportações, com refugiados e com exilados, com destruição massiva de infraestruturas e de edifícios, com interrupção da atividade econômica e com desemprego, com agravamento da pobreza e com ausência de aquecimento no inverno, com precarização dos cuidados médicos e de educação.

Saliento, igualmente, que nos últimos anos, na Federação Russa, ocorreu a substituição do embrionário regime democrático por uma nova ditadura totalitária, marcada, ainda, por elevados níveis de corrupção e de nepotismo, pela especialização na exportação de matérias-primas e de armamento, por um irredentismo de cariz militarista e ultranacionalista e pela ingerência – secreta e declarada – na vida política de outros países. Para além de ditaduras nominalmente de esquerda ou “antiocidentais” (vigentes na China e na Coreia do Norte, na Bielorrússia e no Casaquistão, em Cuba e na Venezuela, no Irã e na Síria, etc.), o atual poder em Moscou tem apoiado individualidades e forças políticas de extrema-direita ou populistas e autoritárias como, por exemplo, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, Recep Erdogan na Turquia e Benjamin Netanyahu em Israel, Nigel Farage no Reino Unido e Marine Le Pen na França, Matteo Salvini na Itália e Viktor Orbán na Hungria.

À luz do irracionalista e negacionista discurso de propaganda emanado da ditadura chefiada por Vladimir Putin, os ucranianos – bem como os outros povos da ex-URSS e do ex-bloco soviético na Eurásia – seriam “racialmente inferiores” aos russos, devendo obediência a Moscou nos planos político e ideológico, diplomático e militar, econômico e religioso. Porque estaria sob o controle de neonazis e de judeus, de homossexuais e de feministas, de ateus e de hedonistas, de liberais e de democratas, de fracos e de decadentes, de agentes dos EUA ou da Alemanha e da Polônia, o sistema político consolidado em Kiev desde 2014 visaria, por um lado, a infligir sofrimento aos russos que vivem na Ucrânia; por outro lado, a garantir a subordinação daquele Estado à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e à União Europeia (UE).

Proponho, assim, que, para avaliarmos a importância da ameaça hoje decorrente da atuação da ditadura existente na Federação Russa (ou, pior, de uma eventual coligação revisionista entre as ditaduras chinesa e russa, bielorussa e norte-coreana, iraniana e síria, etc.), temos de recuar às décadas de 1930 e de 1940. Devemos, também, estabelecer uma comparação com as ditaduras então implantadas na URSS, na Itália, no Japão e na Alemanha; com a colonização da Coreia e com a invasão da China pelo Japão, com a invasão da Etiópia pela Itália, com o Grande Terror e com a Grande Fome na URSS, com a Segunda Guerra Mundial e com o Holocausto.

Em face destes vetores de caracterização e de análise do contexto internacional e do comportamento da ditadura que domina a Federação Russa – tentativa reiterada de limitação da soberania e da integridade territorial da Ucrânia, invasão da Ucrânia, perpetração de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade em território ucraniano –, que escolhas podem fazer todos aqueles que defendem o respeito pelos direitos humanos e a democracia, o multilateralismo e a salvaguarda dos equilíbrios ambientais, o desenvolvimento integrado e sustentável? Quais as sequelas dessas opções no médio e no longo prazos, em nível nacional e na escala global?

Tanto quanto parece ser possível avaliar, haverá três atitudes diferentes com algum grau de viabilidade. Em primeiro lugar, na qualidade de Estado não beligerante ou, mesmo, beligerante, o apoio à Federação Russa, porque se prioriza a condenação do capitalismo e dos EUA, da “democracia burguesa” e do “irrealista multilateralismo”, da Otan e da UE; porque defendem as ditaduras, o unilateralismo soberanista ou imperialista.

Em segundo lugar, a neutralidade (mais ou menos equidistante), uma vez que se atribui prioridade à manutenção ou ao reforço das trocas comerciais; e uma vez que, mesmo na presente conjuntura, se encara o “interesse nacional” sobretudo em pequena escala, no curto prazo e de modo defensivo.

Em terceiro lugar, enquanto Estado não beligerante, o apoio à Ucrânia. Porque se respeitam a soberania e a integridade territorial dos países, os direitos humanos e a democracia; porque se acredita na possibilidade de a cooperação multilateral contribuir para a efetiva atenuação dos efeitos negativos da guerra econômica em curso; porque se pretende que, no futuro, a proteção da soberania e da integridade territorial dos países, os direitos humanos e a democracia, o multilateralismo e a salvaguarda dos equilíbrios ambientais, o desenvolvimento integrado e sustentável estejam mais presentes na atuação, quer dos Estados membros da Otan e da UE, quer de outros países. Eu opto pela terceira hipótese.

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HISTORIADOR, É DOCENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (PORTUGAL). E-MAIL: JPAVELAS@FL.UC.PT

Opinião por João Paulo Avelãs Nunes