O ruído em torno da sessão de hoje do Supremo Tribunal Federal (STF) prova a crescente instrumentalização de tudo relacionado à Operação Lava Jato pela luta pelo poder, tanto das corporações que se apropriaram do Estado quanto das facções e quadrilhas a elas associadas.
Nem a anulação de fatos que deponham contra Temer nem a anulação de fatos que deponham contra Marcello Miller, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a delação dos Batista. Uma coisa não implica necessariamente a outra. Nem, muito menos, a continuação ou não das delações premiadas. Estão em causa só as que porventura tenham sido comprovadamente “armadas”.
Sobre as maquinações de Joesley com Marcello Miller não há dúvida nenhuma. É o próprio Rodrigo Janot quem as denuncia agora. A questão ainda pendente é estabelecer se o procurador-geral mandou prendê-los porque descobriu a conspiração que desconhecia ou porque descobriu que tinham descoberto a conspiração que conhecia, agora com uma prova irremovível do processo.
A resposta objetiva a essa pergunta é dada pela cronologia. O relacionamento entre os Batista e a PGR começa em setembro de 2016 com a Operação Greenfield, chefiada por Anselmo Lopes, que investigava desvios dos fundos de pensão e bancos públicos, modalidade na qual são os campeões dos campeões. De Anselmo os contatos sobem para Eduardo Pelella, chefe de gabinete de Janot, e evoluem para a negociação de uma delação mais ampla. Marcello Miller é o cabeça do GTLV (Grupo de Trabalho da Lava Jato) da PGR desde maio de 2015. Desde pelo menos fevereiro de 2017, segundo e-mails coletados como prova, advogados da Trench, Rossi e Watanabe discutiam com Joesley, em nome de Miller, o pagamento pelo “sucesso” da negociação de sua delação premiada com a PGR. A 19, 20 e 21 de fevereiro há três reuniões, a última com participação oficial da PGR, para discutir a delação premiada da JBS. Só dois dias depois, em 23 de fevereiro, é que Miller se lembra de registrar seu pedido de exoneração. Janot, segundo a versão oficial, não sabia nem se interessou em saber a razão dessa decisão de seu auxiliar. Em 2 e em 6 de março há registro de duas outras reuniões, entre eles na sede da PGR. No dia seguinte, 7 de março, Joesley grava a conversa com Temer no Jaburu que, ocasionalmente, preenche os dois únicos requisitos que podem levar um presidente em exercício ao impeachment: obstrução de Justiça e crime cometido durante o mandato em curso. Miller só é oficialmente desligado do Ministério Público Federal dois meses depois, em 5 de maio. No dia seguinte, já dá expediente no novo emprego.
A 17 de maio a TV Globo estronda o “furo” da gravação no Jaburu. Para o dia seguinte, 18 de maio, estava marcada a primeira votação da reforma da Previdência, que extinguiria algumas das prerrogativas “especiais” para as aposentadorias públicas que explicam porque apenas 980 mil delas custam tanto quanto as 35 milhões de aposentadorias pagas ao resto dos brasileiros somados. Por todas as contagens publicadas, a reforma seria aprovada por mais de 311 votos. No mesmo 18 de maio o País ficou sabendo que os irmãos Batista tinham montado operação de US$ 1 bilhão no mercado de câmbio e outra de venda e recompra maciça das ações de sua própria companhia na véspera da divulgação do escândalo e “ainda longe” do acordo de leniência.
Em 20 de maio, dois dias depois do escândalo, Vera Magalhães publica neste jornal reportagem com todos os pormenores agora confessados de viva voz por Joesley e Saud em sua “conversa de bêbados”, da história da relação entre Marcello Miller, a PGR e a JBS. Mas em 21 de maio Rodrigo Janot afirma que, embora tendo-se bandeado para o inimigo, Miller “não tinha atuado nessa negociação”, e ponto. Em 30 de maio, com endosso de Luiz Edson Fachin, Janot fecha o acordo com os Batista que, agora, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga. Um mês depois de intensa polêmica sobre o perdão total aos dois réus pelo menos R$ 400 milhões mais ricos, o plenário do STF confirma a indulgência plenária em 28 de junho. Somente em 5 de julho, com a persistência da celeuma, Miller desliga-se de Trench, Rossi e Watanabe.
Acontece que todo mundo foi gravado por Joesley Batista, inclusive o próprio Joesley Batista, e tanto ele quanto seu “braço direito”, Ricardo Saud, são funcionalmente “pre-milennials”. “Eu tava sem óculos, puxei pra cá, gravou (...) sei lá, liga pro Denilson, ele é que entende (...).” Daí para a frente a gravação é ácido puro e a trama parece ser do destino. Por engano, o áudio corrosivo é entregue à Polícia Federal como prova da defesa em 31 de agosto. A 5 de setembro, faltando 12 dias para ser jubilado e na véspera do feriadão da Independência, o procurador-geral, em súbita “crise de consciência”, vai à TV comunicar seu “drama íntimo” à Nação, reconhece que Marcello Miller é Marcello Miller, pede a prisão dele, de Joesley e de Saud e, em seu “medo de ter errado”, sai anunciando, em ritmo torrencial, a condenação de todo mundo que passou seu mandato inteiro tratando de não incomodar.
Quanto desse enredo é amor à justiça, quanto é dinheiro no bolso, quanto é a luta pelo poder de salvar o Brasil ou de continuar sendo salvo por ele; em que doses esses componentes todos se misturam, personagem por personagem, são questões que podem ser tão fácil e objetivamente medidas quanto roubalheiras e “contrapartidas”. A impossibilidade de diferenciar métodos e objetivos de “mocinhos” e “bandidos” é que é a questão realmente espinhosa.
A sequência da “virada” do caso JBS abrir com a prisão apenas “temporária” de Joesley e Saud (máximo de dez dias contra a “preventiva” de extrair confissões que pode ser estendida por tempo indeterminado) e com a negativa de Luiz Edson Fachin de prender Marcello Miller, o potencial “delator bomba” plantado no coração do Poder Judiciário, está aí para confirmar. É da fundamental questão da prevalência da prova e do fato sobre o exercício da força (que hoje só o Judiciário detém) que se trata. Do restabelecimento do limite ou da derrocada final de uma fronteira clara entre a civilização e a barbárie, portanto.
*Jornalista, escreve em www.vespeiro.com