O retrocesso na geopolítica mundial arrefeceu o entusiasmo com a agenda ESG (ambiental, social e governança, na sigla em inglês) e a descarbonização deixou de ser o objetivo mais urgente de boa parte da humanidade. Mentes sensíveis detectam o retrocesso. O sul-coreano Bong Joon Ho, que ganhou o Oscar há seis anos, pelo filme Parasita, parece ter obtido US$ 118 milhões para fazer troça com os financiadores. Seu novo filme Mickey 17, considerado um delírio cinematográfico, é uma sátira ao negacionismo. Ele explica a razão desse novo produto: “Nunca houve uma espécie que destruísse o planeta tão rapidamente quanto o ser humano. Temos países deixando o Acordo de Paris, o que é trágico”.
Mais perto de nós, a população paulistana deveria se preocupar com o futuro da “protegida” região dos mananciais. Mais da metade dos habitantes de São Paulo dependem da água do reservatório Guarapiranga, a única represa abastecida por afluentes próprios. O sistema Cantareira recebe água de Extrema (MG), além de outras fontes.
Pois não é remota a possibilidade de essa água acabar. Não é de hoje que a irregular ocupação de uma área objeto de especial tutela, destinada a abastecer de água milhões de pessoas, se faz de maneira incessante e crescente. O aparato estatal, por meio da estratégia Operação Integrada em Defesa das Águas (Oida), resultante de convênio entre Estado e Prefeitura de São Paulo, é impotente para coibir o ritmo das invasões incentivadas e preordenadas a criarem o nefasto “fato consumado”. Até o sistema de Justiça contribui para o agravamento da situação, ao deixar de reconhecer a hierarquia entre direitos fundamentais.
Sim, a moradia é um direito previsto no artigo 6.º da Constituição, mas não se compara com a primeiríssima dimensão da vida, que é o primeiro bem a ser mencionado no caput do artigo 5.º da Lei Fundamental. Não é justo, nem razoável, que algumas milhares de pessoas façam com que a busca por moradia suplante o direito à vida de milhões de paulistanos que dependem da Guarapiranga.
O alerta do Instituto de Engenharia não é de hoje. Sua Divisão Técnica de Saneamento, sensibilizada com a crescente eutrofização do manancial Guarapiranga, diante do lançamento de esgoto não tratado – o que não é desconhecido por Sabesp, Cetesb e por inúmeras associações angustiadas com a situação –, adverte o governo sobre o crescente risco de perda do manancial. Seu tratamento já superou o limite. Exige utilização cada vez maior de produtos químicos, inclusive os de uso ambientalmente não sustentável, adicionados previamente no corpo da represa, antes de a água ser captada.
O Guarapiranga, entre os mananciais que abastecem a Região Metropolitana de São Paulo, é o que apresenta a pior condição sanitária e não pode mais aguardar soluções de longo prazo. A proposta do engenheiro José Eduardo Jardim Poyares é a implantação de unidades de tratamento que evitem o bizarro transporte dos esgotos para a estação de tratamento de Barueri. Essa distância acarreta muitos problemas, com as elevatórias sem manutenção ou sendo alvo de vândalos, a permitirem que o esgoto volte aos afluentes e à represa.
O problema é grave e precisa merecer a atenção de todos. Não apenas dos governos estadual e municipal. Mas de uma comunidade que exerce em São Paulo atividades lucrativas legítimas, porém que nada mais realizam do que intensificar seus lucros. O poderoso setor da construção civil, que inunda a Capital com vários edifícios em cada quarteirão, poderia se envolver no projeto de salvação da Guarapiranga. Assumir pilotos que viessem a qualificar a região, adotando espaços perimetrais que merecessem tratamento ecológico, urbanístico e paisagístico à altura da excelência que as construtoras e incorporadoras obtiveram. Basta verificar o nível dos recentes Prêmios Master outorgados pela Secovi e outras entidades.
Essa atitude cidadã e patriótica seria um ganho reputacional para as empresas que se valeram de benefícios e não destinaram as unidades de habitação de interesse social para os carentes, mas deixaram que elas fossem um atrativo sedutor para investidores. Seria uma espécie de compensação, que evidenciaria não ser exclusivamente o lucro, mas a observância de inegável responsabilidade social, a meta da prestigiada categoria.
A situação caminha para a tragédia e não está recebendo a devida atenção. É muito mais séria do que os assuntos que têm sido o foco das mídias, tanto as tradicionais como as invasivas e onipotentes redes sociais. Sintoma da seriedade é a mensagem que a Sabesp endereça aos clientes que recebem água da Guarapiranga: “Devido a uma variação climática, a água da represa Guarapiranga, que abastece a sua região, passou por alterações naturais. Em algumas áreas, isso pode ter causado uma mudança temporária na coloração da água. A Sabesp ajustou os processos de tratamento, assim que identificou essas modificações. Apesar dessa alteração, a água não representa nenhum risco à saúde”.
A conferir. Água tem de ser aquilo que se aprendeu no ensino fundamental: um líquido insípido, inodoro e, principalmente, incolor. Não esta coisa que pode parecer, mas sobre a qual não existe certeza de que seja realmente água.