A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar
(Martin Luther King Jr.)
A operatividade da ordem penal internacional ocupou, recentemente, a centralidade do debate em razão da representação formulada pela Fundação Hind Rajab perante a Justiça federal brasileira. Isso em virtude da presença do soldado israelense Yuval Vagdani em solo nacional e diante do seu suposto envolvimento em apregoados crimes de guerra cometidos na Faixa de Gaza.
A construção da ordem penal internacional bebe na fonte do projeto humanitário que emerge do pós-guerra. O reconhecimento de um conjunto de ações atentatórias contra a segurança e a paz internacional e os desafios contra a impunidade daqueles que, ao exercerem altos postos nas estruturas de poder, são os grandes responsáveis pelos mais graves crimes cometidos pavimentaram o caminho para a instituição do Tribunal Penal Internacional, ao final do século passado, pelo Estatuto de Roma. As experiências dos Tribunais de Nuremberg e do Extremo Oriente, bem como as dos tribunais ad hoc da ex-Iugoslávia e de Ruanda, são apenas alguns dos capítulos, possivelmente os mais emblemáticos, dessa longa trajetória.
O Tribunal Penal Internacional, com sede na cidade de Haia, é, de fato, o primeiro órgão jurisdicional internacional de caráter permanente instituído para a persecução dos principais agentes responsáveis pela prática dos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão. Sua jurisdição, embora internacional, lamentavelmente não é universal. Importantes países não aderiram ao seu sistema.
De qualquer modo, a ordem penal internacional não se esgota na atuação do Tribunal Penal Internacional. Nem seria viável um projeto de tal magnitude, consciência presente entre os arquitetos do Estatuto de Roma. Em realidade, a ordem penal internacional integra-se pelas jurisdições nacionais e internacional, atuando esta, a princípio, em caráter complementar e subsidiário daquelas. Ou seja, devem os Estados nacionais aprimorarem o seu aparato jurídico e institucional, viabilizando, assim, a persecução dos agentes responsáveis pelos crimes internacionais. A jurisdição do Tribunal Penal Internacional somente atuaria na incapacidade das jurisdições nacionais ou na omissão intencional em se promover a responsabilização dos agentes criminosos.
A promulgação do Estatuto de Roma no Brasil deu-se, como se sabe, pelo Decreto 4.388/2002. Há anos engatinha no Congresso Nacional projeto de lei que busca internalizar as disposições daquele estatuto. O quadro assim desenhado revela que apenas o crime de genocídio foi tipificado na ordem nacional, o que se deu pela Lei 2.899/1956, mas não há tipificação interna dos demais crimes internacionais.
Os passos dados pela ordem nacional indicam a opção pela inaplicabilidade direta das disposições penais previstas pelo Estatuto de Roma. Afirmam essa conclusão a promulgação de lei específica para o crime de genocídio e a decisão do Supremo Tribunal Federal que, ao discutir a aplicabilidade interna da Convenção de Palermo, que definiu a organização criminosa, reafirmou o dogma da reserva constitucional de lei formal em matéria penal.
Assim, a provocação da atuação extraterritorial da jurisdição brasileira, por supostos crimes de guerra, como no caso específico da representação formulada, não poderia ancorar-se no artigo 7.º, inciso II do Código Penal diante da ausência de tipificação interna daquelas específicas condutas. Tampouco auxiliaria a referência ao crime de genocídio. Afinal, neste exige-se que o agente seja nacional ou domiciliado no Brasil (artigo 7.º, inciso I, alínea “d” do Código Penal). Não se incorporou, portanto, o princípio da jurisdição internacional. Por outro lado, a situação não envolve o cumprimento da obrigação internacional de cooperação com o Tribunal Penal Internacional. Com efeito, não há notícia quanto à existência de mandado de prisão expedido por aquele órgão.
A construção da ordem penal internacional, a despeito de suas lacunas e imperfeições, é representativa do processo civilizatório. Buscou-se transpor as páginas da impunidade que marcam indelevelmente a humanidade. O reconhecimento e a afirmação de crimes internacionais trazem a reboque um regime punitivo e persecutório de especial severidade, que se manifesta, entre outras medidas, na imprescritibilidade, na relativização da coisa julgada, na possibilidade de atuação das jurisdições nacionais e da própria jurisdição internacional. São medidas proporcionais à gravidade das ações praticadas. Somos destinatários e instrumentos de realização dessa ordem há muito desejada e ansiada. Devemos, no entanto, concretizá-la movidos igualmente pela contenção de eventuais abusos. Afinal, a Justiça não é medida apenas por seus resultados, mas também pela forma de sua realização.
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SÃO, RESPETIVAMENTE, ADVOGADO CRIMINALISTA, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROFESSOR DE DIREITO PROCESSUAL PENAL DA FAAP, CONSELHEIRO FEDERAL DA OAB, EX-PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM); E DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROFESSOR DE DIREITO PROCESSUAL PENAL DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E DA FAAP