Em maio de 2024, o Brasil se tornou referência mundial no que se refere à participação social na formulação de políticas públicas para a saúde. A conquista se deu diante da aprovação da Resolução sobre Participação Social na Saúde junto aos países que integram a Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a 77.ª Assembleia Mundial da Saúde, cujo encontro ocorreu na Suíça. O documento reafirma a importância para que haja fortalecimento dos representantes da sociedade civil na construção das políticas públicas de atenção primária na área, mediante a participação de coletivos sociais e de entidades representativas que conhecem as demandas sociais dos países implicados. A exemplo do que ocorre na formulação de políticas públicas para a saúde no Brasil, a participação social deveria ser considerada entre os guiões utilizados pelos atores políticos responsáveis pela estruturação de legislações em tema tão relevante quanto o formatado pela utilização programática para o uso da inteligência artificial (IA), sobretudo na gestão de riscos às crianças, adolescentes e mulheres, vítimas potenciais deste tipo de avanço tecnológico.
Em solo brasileiro, o fortalecimento da participação do controle social na construção de políticas públicas para a regulamentação da inteligência artificial tem passado à margem do que é considerado como substancial a países mais avançados em relação às regras para o uso da IA, como é o caso dos Estados Unidos. Apesar do exemplo que ocorre na saúde, em que entidades como a União Brasileira de Mulheres (UBM), Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e União de Negras e Negros Pela Igualdade (Unegro) têm participação fixa e ativa no colegiado do Conselho Nacional de Saúde, não há nada semelhante no debate em torno de inteligência artificial, mesmo quando os dados apontam as mulheres, as crianças e os adolescentes como as principais vítimas de manipulação de imagens com o uso da tecnologia. A despeito de o Congresso Nacional avançar nas conversas sobre a regulamentação das balizas mínimas necessárias para o pleno e bom uso das tecnologias de inteligência artificial, a participação social de setores que compõem a sociedade civil não tem sido considerada no debate que tange a IA, fato que pode gerar inconsistências nos limites para o íntegro e respeitável uso do sistema de tecnologia que avançam em todo o mundo.
Utilizado de forma transparente e igualitária, o conhecimento sistemático e a inovação em IA podem contribuir para aumentar a igualdade de gênero, algo necessário na sociedade mundial, e reduzir violências em camadas mais vulneráveis, metas ainda distantes de serem conquistadas. Nesse quesito, estudos internacionais já apontam que a estratégia em gestão interdisciplinar e o envolvimento de diferentes atores sociais se mostra fundamental no momento da construção de políticas públicas nessa área, cujas fronteiras perpassam as questões tecnológicas. Além de ampliar o fosso das desigualdades sociais e de gênero, a preferência de posicionamentos de setores limitados da sociedade, sobretudo masculinos e ligados a grandes empresas de tecnologia, pode resultar em danos com labirínticas resoluções sociais de médio e longo prazo, em que as camadas mais vulneráveis da sociedade são sempre as mais prejudicadas.
Ainda que os debates sobre a regulamentação do uso da inteligência artificial, no caso do Brasil, não estejam centrados apenas em capacidades tecnológicas, como afirmado pelos atores políticos, torna-se temerário pensar na elaboração de políticas públicas para a sociedade sem que haja participação dos agentes do controle social, ainda mais quando as mulheres já representam a maior parte da população brasileira – mais de 51%. Mundialmente, os dados mais recentes apontam que, além estarem prestes a ultrapassar a população masculina, as mulheres são as que mais definem as flutuações demográficas, motivos pelos quais se tornam tão necessários investimentos qualitativos em recolha de dados com o uso de tecnologias que levem em consideração as características e necessidades dessa camada tão robusta da população.
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JORNALISTA (UFSM), MESTRANDA EM ESTUDO SOBRE AS MULHERES – GÊNERO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO PELA UNIVERSIDADE ABERTA DE LISBOA (UAB), PÓS-GRADUADA EM HISTÓRIA POLÍTICA (UFSM) E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (ATLANTIC COUNCIL), DELEGADA DO COLEGIADO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL DA OCDE (2022-2024), CONSULTORA DA ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS), FOI INTEGRANTE DA DELEGAÇÃO DO COLETIVO DA SOCIEDADE CIVIL DO CONTROLE SOCIAL DO SUS NA 77.ª ASSEMBLEIA MUNDIAL DA SAÚDE