Chegou a hora do acerto das contas dos déficits dos fundos de pensão. Os Ministérios da Fazenda, do Planejamento e a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) decidiram criar resoluções e instruções para lidar com o imbróglio. A ideia, como vem ocorrendo, é passar por cima dos problemas abissais de gestão de recursos de terceiros e encarar tudo como questão meramente atuarial, como se não tivessem existido as fraudes e esquemas de corrupção que drenaram dezenas de bilhões de reais dos fundos. Segundo a lógica “técnica” dos engenheiros e economistas do governo, cria-se um emaranhado de regras financeiras e contábeis que devem resultar na transferência dos prejuízos para a conta dos aposentados e beneficiários dos fundos de pensão.
A Resolução n.º 25, de 6/12/2018, da Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), em seu artigo 3.º, determinou que novos planos de benefícios de previdência complementar das empresas estatais federais deverão ser patrocinados exclusivamente na modalidade de contribuição definida. A Resolução n.º 30, de 30/10/2018, do Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) determina no artigo 6.º que os métodos de financiamento admitidos, regra geral, seguirão o regime financeiro de capitalização. Resolvem-se, assim, questões atuariais de envelhecimento da população e incapacidade dos profissionais em exercício de arcar com benefícios dos aposentados, responsabilizando os próprios beneficiários pela constituição dos recursos que irão remunerá-los no futuro.
Muito bem. Mas o artigo 35 da Resolução n.º 30 estabelece como formas de equacionamento dos déficits “a instituição ou aumento de contribuição extraordinária” e “a redução do valor dos benefícios a conceder”. Leia-se: os rombos causados por operações temerárias e fraudulentas são matematicamente calculados e repassados aos beneficiários, que não foram consultados nem contribuíram para as tomadas de decisões irresponsáveis e criminosas na gestão dos recursos.
É surpreendente que, crise após crise, os sucessivos governos brasileiros não se proponham a legislar para melhorar o arcabouço regulatório primitivo no que tange a responsabilidade, transparência e prestação de contas necessárias na gestão de recursos de terceiros. Apenas neste século os Estados Unidos editaram o Sarbanes-Oxley e o Dodd-Frank Acts, duas grandes peças legislativas que reviram extensamente padrões de governança corporativa para a gestão de investimentos de terceiros com o intuito de mitigar riscos de negócios e evitar fraudes.
Comparativamente, o Brasil mantém desde 1976 basicamente as mesmas leis sobre mercado de capitais e governança corporativa de sociedades anônimas, inspirando-se nesse regime atrasado para regular a governança do sistema de previdência complementar criado pelas Leis 108 e 109 de 2001.
Nesse quesito, a nova Resolução n.º 30 refere a governança apenas quando cita, no artigo 13, II, sobre precificação de ativos e passivos, “os riscos que possam comprometer a realização dos objetivos do plano de benefícios, nos termos da Resolução CGPC n.º 13, de 1.º de outubro de 2004”. Acontece que essa antiga resolução, que trata de “princípios, regras e práticas de governança, gestão e controles internos”, filosofa apenas platitudes abstratas para a governança dos fundos de pensão. Idealiza, no artigo 1.º, que as entidades fechadas de previdência complementar devem adotar princípios que assegurem “o pleno cumprimento de seus objetivos” e relega a determinação das práticas ao “manual de governança corporativa” do próprio fundo (§ 2.º), que é manobrado a bel-prazer de seus gestores. Ainda estabelece tal resolução que “cultura interna” seja desenvolvida pelos dirigentes de cada fundo (artigo 2.º), que deverão manter conduta “pautada por elevados padrões éticos e de integridade” (artigo 3.º).
Se tais inocuidades regulatórias sobre a governança dos fundos restringissem decisões temerárias e fraudulentas, os fundos Petros, Postalis, Funcef, Previ, Serpros, Refer e Portus, entre outros, não teriam acumulado prejuízos bilionários por má gestão e fraudes investigadas por operações da Polícia e do Ministério Público Federais. Recentemente foram presas 18 pessoas, entre executivos de empreiteiras e ex-dirigentes da Petrobrás e do Petros, pelo esquema de construção e locação superfaturadas do edifício Torre de Pituba, vinculado ao pagamento de propinas (Estado, 24/11). A delação de Palocci revelou que o projeto de dilapidação dos recursos dos fundos se baseava na realização recorrente de investimentos sem análise (Estado, 25/11).
Tais desmandos de gestores são possibilitados e incentivados por aparato legal e regulatório atrasado no que tange 1) às regras de composição de diretoria, conselhos deliberativo e fiscal, que não observam padrões internacionais de independência dos membros; 2) à inexistência de padrões de revisão especiais para aprovação de operações com conflitos de interesses; 3) à falta de informações sobre a gestão aos investidores-participantes; 4) à falta de mecanismos que possibilitem o controle das decisões dos dirigentes pelo próprio conselho fiscal, que deveria representar os interesses de investidores-participantes; 5) à falta de jurisprudência que efetivamente responsabilize gestores por quebras de deveres fiduciários; 6) à falta de mecanismos de reparação e recuperação do dinheiro desviado em caso de ocorrência de gestão ilícita e fraudulenta; e, finalmente, 7) a um Poder Judiciário não capacitado para lidar com questões financeiras complexas.
Sem reformas abrangentes que ataquem esses problemas, não há “cultura interna” que previna fraudes e corrupção que os outros países coíbem com normas e enforcement implacáveis.
* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE