Em novembro, o historiador Niall Ferguson, professor em Harvard e Stanford, realizou palestra sobre como as universidades podem se tornar incubadoras de pensamentos políticos extremistas. O atual estado de coisas é a sua evidente inspiração.
O título escolhido para a conferência foi A Traição dos Intelectuais, alusivo ao livro homônimo do filósofo judeu francês Julien Benda. A obra, lançada em 1927, antecipou um dos mais decepcionantes encontros de conta da História: as universidades alemãs, a despeito da sua muito conhecida excelência acadêmica, foram as primeiras plataformas sociais do nazismo.
A Traição dos Intelectuais é uma crítica veemente aos intelectuais de seu tempo. Em vez de se dedicarem à busca desinteressada pela verdade e pela justiça, passaram a apoiar paixões políticas, partidárias, sectárias, nacionais e raciais, a intensificar divisões e conflitos. O século 20 teria se tornado “o século da organização intelectual dos ódios políticos”.
No dia 30 de outubro, na Universidade Federal do Ceará (UFC), no Departamento de Ciências Sociais, dois acadêmicos judeus de esquerda – Michel Gherman e Matheus Alexandre de Araújo –, conhecidos por suas críticas a muitas das políticas do governo de Israel, foram convidados para uma mesa-redonda sobre a guerra Israel-Hamas. O anfitrião era o professor Jawdat Abu-El-Haj, de origem palestina. Durante o evento, a discussão foi interrompida por jovens estudantes e seus mentores intelectuais. E o entrevero, comemorado por conteudistas digitais.
Toda minoria já experienciou que a intolerância e o racismo buscam se evadir da justiça com vestes de críticas legítimas e intenções puras. Muitas vezes, o conseguem. No caso do racismo antissemita, muitas vezes, com as roupas da crítica política antissionista – aliás, uma pauta contrária ao Direito Internacional porquanto tem por objetivo o fim da existência de um Estado plenamente reconhecido pela ONU, pelas organizações internacionais e pelo concerto de nações.
Esse mesmo grupo e seus semelhantes têm o hábito de usar o termo “fascista” como uma espécie de cartada retórica, para desqualificar qualquer argumentação desafiadora e para enquadrar o oponente num estereótipo aversivo.
É fato que o mundo atravessa uma virada autoritária, e há razões para preocupação. O Democracy Index da revista The Economist mostra que as democracias têm perdido espaço e a qualidade das existentes tem se deteriorado. Em alguns casos, é correto afirmar que há um fortalecimento de macrofascismos: governos e instituições autoritários, violentos e desrespeitadores dos direitos de minorias. Não menos correto é afirmar existir, no momento, uma pandemia de microfascismos, à esquerda e à direita.
Gilles Deleuze e Félix Guattari introduziram o conceito de “microfascismos” analisando como a opressão pode se manifestar de forma descentralizada, emergir na vida cotidiana, por meio de atitudes autoritárias e opressivas, mesmo em movimentos de esquerda, pretensamente libertários, emancipatórios, promotores da liberdade e da inclusão, protetivos dos direitos de todas as minorias.
Sob o microfascismo, a autonomia do pensamento é vilipendiada: dos aliados e dos oponentes. Espera-se que os membros da esquerda autoritária aceitem sem reservas e obedeçam de forma automática e aguerrida as ortodoxias e os catecismos de seus líderes. Normas, censuras internas e externas e vigilância comportamental contra os aliados. Discursos de ódio, incitação à violência, racismo recreativo e sadismo contra os oponentes.
Por coerência ideológica e política, o combate a essas tendências deveria ser uma prioridade dentro dos movimentos libertários. Propositadamente, ele é ignorado por ser útil ao avanço de objetivos políticos, agendas ocultas e pessoais e projetos de poder.
Deleuze, Guattari, Gherman, Azevedo – todos esses pensadores pertencem e ainda representam uma esquerda autêntica: a verdadeiramente antifascista, comprometida com o livre pensamento e o diálogo. Uma esquerda com estofo acadêmico, produção séria e reflexão profunda.
Fiodor Dostoievski já havia alertado sobre as paixões sectárias e políticas da juventude de esquerda que, alimentadas por seus mentores, deslegitimam, desrespeitam, agridem, oprimem e, no limite, matam. Para o autor, os verdadeiros demônios da sociedade de seu tempo.
As ideias de ódio ventiladas, sugeridas, sussurradas, presencialmente ou nas redes, como temos assistido, à esquerda ou à direita do espectro político, são as verdadeiras responsáveis pelas violências de toda sorte que têm sido cometidas contra minorias, judeus inclusos, mundo afora.
Em contextos onde o microfascismo impera, não há espaço para a verdadeira liberdade política ou para o genuíno compromisso com os direitos humanos. O que predomina são compromissos pessoais e de grupos, distantes de quaisquer ideais civilizacionais verdadeiramente honrados.
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DOUTORA EM DIREITO PELA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA SUÍÇA DE DIREITO INTERNACIONAL