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Opinião | O devaneio da moeda única sul-americana

Mesmo que houvesse um incentivo, demais condições estariam ausentes, se é que um dia existirão neste continente pobre de cultura capitalista

Por Maílson da Nóbrega

Fernando Haddad e Gabriel Galípolo defenderam, em artigo na Folha de S.Paulo (1/4/2022), a criação de uma moeda sul-americana para “acelerar a integração regional”. Haddad reiterou a proposta logo que foi indicado como o próximo ministro da Fazenda. Trata-se de mero devaneio.

Ao longo da história, houve muitas iniciativas para se criar uma moeda única. A primeira ocorreu no Império Romano; a segunda, nas dinastias chinesas Qin e Han. A União Monetária Latina (1865) envolveu França, Bélgica, Suíça, Itália e Grécia. Problemas decretaram sua extinção em 1914, no início da 1.ª Guerra.

Haddad e Galípolo se equivocaram ao afirmar que a moeda única sul-americana aceleraria a integração regional. Deveria ser o contrário. No euro, a integração precedeu a moeda única. Por outro lado, falta à América do Sul a motivação fundamental que viabilizou o euro, qual seja a tragédia da 2.ª Guerra. Líderes europeus ocidentais pensaram a integração como meio para evitar um novo conflito catastrófico. O objetivo comum da prosperidade seria o caminho para a paz. Estavam certos.

O passo inicial foi a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), composta por Alemanha Ocidental, França, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Mais tarde, esses mesmos países assinaram o Tratado de Roma (1957), que estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia (CEE) para promover a integração. A tributação do consumo seria harmonizada com a adoção obrigatória do imposto sobre o valor agregado (IVA), em vigor na França desde 1954. O arcabouço fiscal comum previa metas para o déficit e a dívida públicos.

A criação do Sistema Monetário Europeu (1979) visou a evitar excessiva volatilidade cambial. Simultaneamente, nasceu a Unidade de Conta Europeia (ECU, na sigla em inglês), equivalente à média ponderada das moedas das já agora 12 nações da CEE, que veio a ser substituída pela União Europeia com o Tratado de Maastricht (1993).

O Banco Central Europeu (1998) coroou as inovações institucionais do projeto. A ECU deu lugar ao euro em 1.º de janeiro de 1999, a ser inicialmente utilizado apenas em transações comerciais e financeiras. Notas e moedas foram introduzidas em 2002, 51 anos após o início do processo de integração.

A implantação do euro – que demandava mais tempo e a criação de uma união fiscal – acabou sendo antecipada diante da unificação da Alemanha. Margaret Thatcher e François Mitterrand, líderes do Reino Unido e da França, teriam visto em uma Alemanha fortalecida o fantasma da 2.ª Guerra. Para afastar esses e outros temores, o chanceler Helmut Kohl pronunciou uma frase marcante: “Não queremos uma Europa alemã, mas sim uma Alemanha europeia”. O euro aconteceu.

A trajetória que culminaria no euro enfrentou crises e sobressaltos. A mais grave foi a crise da dívida pública que irrompeu em 2009, agravada, entre outros fatores, pelo estouro de bolhas imobiliárias em alguns países. O setor público teve que assumir dívidas privadas para evitar o colapso do sistema bancário e das respectivas economias. A ausência da união fiscal tornou mais difícil o enfrentamento da crise.

À época, temeu-se que o euro não sobreviveria, mas isso não aconteceu. A zona do euro passou bem no teste. O muito que estava em jogo levou a um grande esforço para resolver a crise. A atuação conjunta da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional (FMI) resgatou os países mais endividados. Em seguida, foram criados dois mecanismos de defesa do euro, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira (Feef) e o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).

Esse breve sobrevoo histórico sobre o ambiente propício às transformações institucionais que asseguraram o nascimento do euro mostra que a América do Sul está longe de ostentar as mínimas condições para criar e manter o sur, nome que seria dado à moeda única da região. Mesmo que houvesse um incentivo tão poderoso como o de evitar os horrores de uma nova guerra catastrófica (o que não é o caso), as demais condições estariam ausentes, se é que um dia existirão neste continente pobre de ideias e da cultura capitalistas que explicam o nível de riqueza das nações europeias.

A moeda única seria inviável sem um dos principais países da América do Sul, a Argentina, que tem padecido de crônico desequilíbrio macroeconômico, fonte de frequentes crises inflacionárias. Sem ela o projeto não decolaria, a não ser que fosse expulsa do Mercosul. A harmonia tributária seria impossível quando o maior país, o Brasil, tem uma tributação do consumo distorciva e caótica. Mesmo que a reforma de que tratam as PECs n.º 45 e 110, de 2019, fosse aprovada, o pleno funcionamento do novo regime levaria pelo menos cinco anos.

Ao contrário do que sugere a proposta, a criação de uma moeda única não acontece por uma simples ação voluntarista. Nem pela inversão de suas fases. Se a moeda única impulsionasse a integração regional, o carro teria puxado os bois.

Opinião por Maílson da Nóbrega