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Opinião|O dogma da justiça social

Um certo ceticismo se manifesta entre muitas pessoas que se preocupam com o futuro da universidade

Por Marcos Lopes

Compromisso social e formação acadêmica de excelência são realidades incompatíveis em nossas universidades públicas? Apenas se esse compromisso social, inerente a toda instituição pública, for colonizado pelo dogma da justiça social. Esse risco ocorre quando se atribui a uma instituição de ensino superior a função normalmente assumida por movimentos e instituições voltados para a redenção dos oprimidos; ou quando a opção pelas minorias se torna o ethos dominante das práticas pedagógicas e científicas, a ponto de desvirtuar a própria pluralidade de horizontes epistemológicos e políticos reivindicada por tais grupos.

Essa questão foi abordada, há alguns anos, pelo professor Jonathan Haidt, da New York University. Em Why universities must choose one telos: truth or social justice, Haidt aponta que essa disjunção não é uma questão nova, tampouco simples. Ele exorta os estudantes a, individualmente, “abraçarem a verdade como a única forma de praticarem um ativismo que irá efetivamente promover a justiça social. Mas uma instituição como a universidade deve eleger apenas um supremo e inviolável bem”. Segundo ele, buscando responder à pergunta – qual seria o fim último da universidade –, confrontam-se duas tradições filosóficas (Karl Marx e John Stuart Mill) nas quais são decisivas as noções de justiça e verdade.

Marx seria o santo padroeiro de uma universidade orientada para a justiça social. Seu objetivo é “mudar o mundo (...) através da derrubada das estruturas de poder e de privilégios”. Por isso, ela “vê a diversidade política como um obstáculo à ação”. Já Mill seria o santo padroeiro de uma universidade orientada para a verdade, a qual é vista “como um processo no qual indivíduos imperfeitos desafiam o raciocínio tendencioso e incompleto uns dos outros”. Esse tipo de universidade morre “quando se torna intelectualmente uniforme ou politicamente ortodoxa”.

Haidt apresenta dois tipos de visões com consequências distintas. Uniformidade e ortodoxia tornam-se riscos tangíveis quando deixamos de corrigir nossos pontos de vista a partir do ponto de vista dos outros, isto é, quando não levamos a sério a diversidade. O cerne de seu argumento está na ideia de que a imperfeição moral nos conduz a um processo interminável de correção na busca da verdade. Ela não é um dogma, mas um telos que desafia nossas lealdades afetivas, morais, intelectuais e religiosas. Sua busca deflagra um processo de emancipação dos indivíduos, cuja consequência poderá ser o aprimoramento da justiça social.

A justiça social tem sido afirmada como valor universal autoevidente e urgente. Nas comemorações pelos 90 anos da Universidade de São Paulo (USP), a cantora Marisa Monte pediu mais cotas nas universidades públicas, sendo ovacionada pelo público presente. Mas qual o impacto real da ampliação dessa política para o universo de alunos carentes egressos das escolas públicas?

O anuário estatístico das escolas públicas do Estado de São Paulo mostra que, em 2019, elas responderam por 85% dos egressos do ensino médio, correspondendo a 1,89 milhão de jovens. O site da Comissão Permanente para os Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas (Comvest-Unicamp) descreve a distribuição de vagas (3.435 no total) para os segmentos que as disputaram em 2024, quando 47% desse total foi preenchido por egressos das escolas públicas. Isso corresponderia a aproximadamente 1.600 vagas, em um universo de quase 2 milhões de concluintes do ensino médio no Estado. Assim, 0,1% daquele contingente consegue anualmente acesso à Unicamp. Qual a relevância disso no universo de alunos concluintes? Qualquer aumento da inclusão universitária teria efeito pouco expressivo, em termos de escala.

O exercício docente institui um espaço orientado para o pensamento complexo, a meditação cuidadosa, a leitura atenta e prolongada de autores legitimamente canonizados. De tais práticas e referências a universidade se beneficiou para criar a base intelectual de seu próprio compromisso social. Como diz Haidt no artigo citado, a humanidade superou o conflito tribal graças à nossa capacidade de criar grupos em torno de objetos e princípios sagrados. Na academia, tradicionalmente, o fizemos em torno da busca da verdade. Mas, cada vez mais, a universidade tem se organizado em torno de alguns victim groups. Esse conflito pode ser manejado até certo ponto, mas, em algum momento, algo importante, duramente conquistado, pode se romper. Vale a pena correr esse risco?

O dogma da justiça social alimenta o autoengano de militantes e de parte das elites universitárias e culturais, que fazem dos pobres e das minorias um cavalo de batalha para promoverem uma imagem elevada de si mesmas. Desconfiar desse dogma não significa colocar-se contra os direitos dos mais fracos. Um certo ceticismo se manifesta entre muitas pessoas que se preocupam com o futuro da universidade. Deveria ser considerado como um gesto normal, e não uma blasfêmia, expô-lo publicamente.

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PROFESSOR DE LITERATURA GERAL E COMPARADA NA UNICAMP

Opinião por Marcos Lopes

Professor de Literatura Geral e Comparada na Unicamp