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Opinião | O Enem e a polêmica nas provas de Linguagem e Ciências Humanas

O problema não está nos governos. Algo mais profundo determina os acertos e equívocos das questões elaboradas

Por Isaías Pascoal

As provas de Linguagem e Ciências Humanas do Enem 2023 foram objeto de ampla polêmica na sociedade. Políticos, notadamente os alinhados ao agronegócio, economistas, jornalistas, artistas e grandes jornais explicitaram suas discordâncias em relação ao sentido de diversas questões.

Este Estadão, em editorial do dia 8 de novembro intitulado A educação como cabresto, fez um severo libelo contra o que considera utilização indevida pelos governantes de plantão da avaliação feita pelo Enem: “Em vez de testar aprendizado, mede obediência do aluno à doutrinação”, asseverou o jornal.

Nas mesmas páginas do Estadão se pronunciaram reconhecidas personalidades no campo do jornalismo e da educação. Willian Waack, em artigo intitulado O Enem e o atraso mental do Brasil (8/11, A18), e Cláudia Costin, em artigo intitulado Crítica ao Enem, escola e preconceito contra o mundo do trabalho (9/11, A18), também verbalizaram suas críticas à prova.

O Ministério da Educação e o Inep se defenderam arguindo que as questões são elaboradas por professores de instituições federais de ensino que participam de um edital de seleção e que a maior parte das questões da prova criticada foi feita sob o governo de Bolsonaro, desejando com isso se isentar de culpa da mesma forma que ao governo Lula.

A argumentação em boa parte é verdadeira. O governo atual funciona mais como um espaço potencializador de certas tendências. Mas o problema deve ser olhado por outra perspectiva. Não fica bem ao governo intervir na aprovação ou não de questões. Não é da sua competência. Bolsonaro tentou isso, criou crise no Inep e foi amplamente criticado.

Há um pano de fundo que atua na formulação das questões do Enem independentemente do governo de plantão. É a cultura educacional presente nas universidades e institutos federais nas áreas de Linguagem e Ciências Humanas, cujos professores atuam majoritariamente na elaboração dos itens (as questões da prova). Por isso, mesmo sob os governos do PT, Temer e Bolsonaro, o sentido das questões não mudou.

Trabalhei numa instituição federal de ensino com professores de diversas áreas selecionados para a elaboração de itens. Participei de treinamento em Brasília ministrado pelo Inep e pude entender in loco os procedimentos adotados.

Os itens são produzidos a partir de critérios preestabelecidos, revisados pelos pares e remunerados. O problema não está nos governos. Algo mais profundo determina os acertos e equívocos das questões elaboradas, como a dubiedade das alternativas vista no caso do depoimento de Caetano Veloso sobre a questão com base em suas canções e nas questões que foram alvo de crítica em razão do seu conteúdo carregado de ideologia.

É importante ter presente que não é correta qualquer forma de generalização em relação aos elaboradores e aos cursos que compõem as áreas. Mas a experiência tem evidenciado que há uma maneira de pensar, de encarar a educação e a produção do conhecimento que é mais resistente aos solavancos da superfície. É essa forma de encarar a educação que também está por trás da oposição à reforma do ensino médio, dos cursos sobre golpe de Estado patrocinados por vários departamentos de Ciências Humanas em diversas universidades logo após o impeachment da presidente Dilma Rousseff e de um tipo de revisionismo do conhecimento que colocou sob severa crítica o que foi produzido anteriormente, nem sempre separando convenientemente o que poderia ou não ser descartado ou relativizado.

Hoje há uma forte tendência na educação, no campo das Ciências Humanas e da Linguagem, em abordar temáticas como minorias, setores marginalizados socialmente, exclusão e inclusão, que são legítimas e fazem parte do ofício do pesquisador em Humanidades. Mas há também uma propensão em ver de forma negativa o mercado, o capitalismo, a educação técnica ao estilo do Sistema S, o liberalismo e o neoliberalismo, concorrência, competitividade e tudo o que de alguma forma tem relação com esses conceitos. Eles são vistos como antagônicos à emancipação humana, à educação crítica, libertadora e à inclusão social e racial. Essas perspectivas, inevitavelmente, repercutem no conteúdo das questões do Enem.

Trata-se, portanto, da existência de uma espécie de paradigma que preside a produção e a divulgação do conhecimento perceptível em várias dimensões: programas de pós-graduação, questões do Enem e livros didáticos. Quando Thomas Kuhn elaborou o conceito de paradigma, quis mostrar a presença de uma ordem, de um construto, que unifica a forma de pensar, de produzir o conhecimento, de adoção de metodologias e do que vai ser ensinado. Não adianta argumentar racionalmente contra o paradigma dominante. É questão de fé nas ideias que orientam os seus integrantes. Só com o desgaste do paradigma dominante é que outras metodologias, visão de mundo e ideias triunfam.

O Enem tem de resistir à instrumentalização política. Mas isso só será conseguido com procedimentos mais cuidadosos, com revisão das diretrizes para a elaboração das questões e com o compromisso ético dos elaboradores de itens no sentido de incentivar a consciência crítica, preservar a pluralidade e fugir de toda forma de esquematismo e unilateralismo. Só assim será possível evitar transformar a educação num processo de colonização mental e lançar desconfiança num instrumento importante de seleção de candidatos aos cursos superiores, como é o caso do Enem.

O compromisso fundamental da educação, por mais que tenha mudado ao longo do tempo, ainda pode ser enunciado na célebre construção de Immanuel Kant: “Esclarecimento é a emergência do homem da sua imaturidade auto incursa. Sapere aude (ouse saber). Tenha a coragem de usar seu próprio entendimento”. Para Kant, essa é a única via para a emancipação e a autonomia.

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É DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Opinião por Isaías Pascoal