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Opinião | O filho do pobre

Sucesso de Annie Ernaux no Brasil coincide com o surgimento de uma população ‘transclasse’ beneficiada por políticas para o ensino superior das últimas duas décadas

Antes de receber o Nobel de Literatura, Annie Ernaux já era festejada no Brasil, o que nem sempre acontece com os laureados pela Academia Sueca, muitos deles então inéditos por aqui. A escritora francesa, ao contrário, estava sendo relançada pela Editora Fósforo desde 2021, num projeto que rendeu nove livros até agora, e tinha a participação confirmada na edição de 2022 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o festival de literatura mais importante do País.

Ernaux é um dos principais nomes da chamada autoficção, gênero posicionado entre a autobiografia e a ficção na prateleira de formas literárias que os escritores contemporâneos têm gostado de desordenar, inclusive os brasileiros. Mas não foi só a forma de narrar que a aproximou do Brasil. Nos “relatos autosociobiográficos”, como prefere classificar a própria obra, a autora evoca a história coletiva da França a partir de sua história familiar, uma filha de operários que ascende socialmente por meio dos estudos, e a mobilidade social é um dos grandes temas do País.

Embora a desigualdade social tenha características distintas no Brasil e na França, a começar pelos efeitos do colonialismo para os dois países, é o relato da experiência individual que torna a literatura de Annie Ernaux universal. Essa aproximação de realidades pode ser feita em O Lugar, por exemplo, livro em que a autora recupera a memória que tem do pai, “uma vida regida pela necessidade”.

Após a morte do pai, a narradora de O Lugar encontra na carteira do homem dois registros: a foto de um grupo de operários, entre os quais ele aparece na terceira fila, e o recorte de jornal com o resultado do vestibular para a faculdade de Educação em que a filha havia ficado em segundo lugar. Mas o orgulho do pai, agora comerciante, era contido. Dos clientes escondia que a filha recebia uma bolsa para estudar, afinal, escreve ela, “iam dizer que baita sorte eles têm para o Estado me pagar e eu não fazer nenhum trabalho braçal”. Aos 65 anos, no entanto, o ex-operário ficaria satisfeito ao contar ele também com uma proteção do Estado, a previdência social. “A cada dia, ele gostava mais de viver.”

Ernaux não é a única a explorar a condição de “trânsfuga de classe” na autoficção contemporânea. Os sentimentos de vergonha e de inadequação, seja na origem ou no destino social, estão presentes na obra dos franceses Didier Eribon e Édouard Louis, também publicados no Brasil. Louis, a propósito, deve participar da Flip neste ano, aproveitando o interesse do leitor brasileiro pela literatura autoficcional e de mobilidade social.

Na França de Ernaux, Eribon e Louis, uma pessoa pobre pode levar seis gerações para chegar à classe média. Já no Brasil seria preciso nove gerações, ou 180 anos, segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Uma pesquisa sobre o cenário brasileiro, feita pelo Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Econômicas (Gappe), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra ainda um ambiente com poucas condições para o esforço individual: um filho de família pobre tem só 2,5% de chance de chegar ao topo da estrutura social.

O sucesso editorial de Annie Ernaux no Brasil, quase 50 anos depois de sua estreia literária, coincide com o surgimento de uma população “transclasse” beneficiada pelo conjunto de políticas para o ensino superior das últimas duas décadas, como o Prouni, o aumento de vagas nas universidades federais, a expansão do Fies e a Lei de Cotas. Entre essas pessoas há aquelas que não somente foram as primeiras da família a fazer faculdade, mas também ultrapassaram ainda no estágio o salário da vida inteira dos pais.

Na migração de classe brasileira há experiências singulares, como a dos negros, tratada por Neusa Santos Souza em Tornar-se Negro (1983), e a dos descendentes dos imigrantes europeus pobres, que apesar do benefício racial tiveram pouca proteção do Estado. No livro O que é meu, vendido para dez países antes do lançamento no Brasil, José Henrique Bortoluci narra a “vida de trabalho” do pai. Seu Didi, neto de italianos nascido em Jaú (SP), trabalhou como caminhoneiro em construções que ajudam a contar a história nacional, como a da Rodovia Transamazônica.

“Não consigo nomear com meu vocabulário acadêmico esse Brasil que emerge de suas histórias”, escreve Bortoluci, que é doutor em Sociologia. A solução foi deixar o pai falar, ou transcrever as entrevistas que fez com o caminhoneiro aposentado tentando ser fiel à oralidade.

Além de o Brasil ter um elevador social quebrado para consertar, o País ainda precisa lidar com ameaças de retrocesso no pouco avanço que fez, como a baixa empregabilidade na área de formação e a queda na estrutura social com a perda de renda na aposentadoria. Já as preocupações próprias de viajantes entre classes, essas talvez nunca passem. “Migrantes de classe costumam ter talento para a análise social, o que raramente compensa os custos pessoais de habitar essa condição cindida”, escreve o sociólogo filho de caminhoneiro. Mas o medo de perder tudo, o fardo de ser responsável pelo bem-estar dos pais, a percepção conflituosa entre trabalho braçal e intelectual, entre outras angústias, podem ser elaborados com a ajuda da literatura – seja como escritor, seja como leitor.

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JORNALISTA

Opinião por Amanda Calazans