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Opinião|O ‘Leitmotiv’ e o direito de propriedade

Imaginar um mundo sem o direito de propriedade remete a um cenário hipotético com negativos impactos na organização social e econômica

Por Basilio Jafet

As pessoas se movem por propósitos. É o que a língua alemã define como Leitmotiv, ou o motivo condutor que faz caminhar as criaturas; impulsiona-as à ação. Foi assim que a humanidade avançou. Descobriu objetivos e desejos; trabalhou e criou o mundo que temos hoje; e segue transformando a realidade. Mas o que o Leitmotiv tem que ver com direito de propriedade? Um exercício sobre a trajetória da civilização mostra inexorável conexão.

Esse direito surgiu de forma gradual e irregular ao longo da História, influenciado por diversos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais. Nas sociedades primitivas, a propriedade era frequentemente coletiva. A principal preocupação era garantir a subsistência do grupo, e a ideia de acumulação individual de bens não era relevante. É possível que houvesse a posse de objetos pessoais como ferramentas, adornos corporais ou roupas. Estudos arqueológicos e antropológicos indicam isso, embora muitos aspectos não sejam ainda totalmente compreendidos.

Na Antiguidade, marcada pelo desenvolvimento da agricultura, a sedentarização – estabilidade e permanência das comunidades em um local específico – levou à construção de habitações duráveis. O conceito da unidade privada começou a se desenvolver. As pessoas passaram a ter mais controle sobre os recursos e os bens que produziam, e a propriedade individual se tornou um elemento importante para a organização social e econômica.

Civilizações antigas como Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma estabeleceram sistemas jurídicos que reconheciam e protegiam o direito de propriedade, visto como um elemento fundamental da ordem social.

Durante a Idade Média, o sistema feudal moldou a relação entre propriedade e poder. A maior parte da terra pertencia à nobreza, enquanto os servos tinham acesso limitado à propriedade. A Igreja Católica também detinha grande poder sobre a propriedade de terras. Tal cenário mudou na Idade Moderna. A partir do Renascimento e da revolução iluminista, o conceito de propriedade privada ganhou força. Filósofos como John Locke e Jean-Jacques Rousseau defenderam a propriedade como natural e essencial para a liberdade e a prosperidade. E as Revoluções Americana e Francesa consagraram o direito de propriedade nas suas Declarações.

Chegamos à era contemporânea, o século 20, em que a posse do imóvel foi questionada por movimentos sociais e políticos que defendiam uma distribuição mais justa da riqueza. O conceito de função social da propriedade ganhou espaço, considerando que o direito de propriedade não seria absoluto e deveria ser exercido em consonância com o bem-estar social.

Atualmente, o direito de propriedade é fundamental e reconhecido na maioria das Constituições do mundo, que nele enxergaram uma alavanca para o progresso. Tal visão não é compartilhada por países em que a democracia inexiste e a liberdade é cerceada. Nesses casos, habitação é premissa de governos que determinam onde e como as pessoas devem morar, tendo o poder para desalojá-las a qualquer tempo. Apaniguados são privilegiados; vulneráveis são cooptados, se não aliciados. A ausência de negócios imobiliários sacrifica suas respectivas populações.

Países que assim o fazem sofrem com a aniquilação de um sistema de mercado pujante e essencial para o desenvolvimento comum: o mercado imobiliário, que, no Brasil, por exemplo, movimenta mais de 95 setores correlatos da indústria, comércio e serviços – e responde pela oferta de emprego a milhões de trabalhadores.

O Leitmotiv faz as pessoas desejarem o próprio; a buscarem o crescimento pessoal e material. Traz o propósito de trabalhar, progredir e realizar o sonho da moradia – que é referência de cidadania –, e o direito de propriedade alicerça esse processo ao garantir que aquilo que pertence a alguém não pode ser sumariamente suprimido. É por isso que é cláusula pétrea de Constituições, inclusive a brasileira.

Daí a permanente necessidade de as nações livres defenderem um direito que irmana, de forma indissociável, o ser e o ter. Sem isso, o resultado único e provável é a submissão de todos ao governo de plantão. E há outras consequências. No processo evolutivo da humanidade, a busca do progresso material repercutiu diretamente em vários aspectos. Desenvolveu a inteligência, a ciência, as inovações que guiaram o crescimento mundial. Estando culturalmente o bem imóvel no topo da pirâmide dos objetivos da maioria das pessoas, quando removemos esse item da legítima lista de desejos, o viver para subsistir ganha relevância. E também se esvai o senso de pertencimento que sustenta uma nação proporcionado pela casa própria.

Imaginar um mundo sem o direito de propriedade nos remete a um cenário hipotético complexo e com negativos impactos na organização social e econômica. Sem a garantia da propriedade privada, as pessoas teriam menos incentivos para investir em trabalho, produção e acumulação de bens. Isso poderia levar a muito além da estagnação econômica e à diminuição da produtividade. Isso apagaria o ânimo de buscar a prosperidade. Alguém deseja viver assim? Sem uma pulsão vital, sem Leitmotiv?

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DIRETOR DO GRUPO JAFET, É VICE-PRESIDENTE DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS DO SECOVI-SP

Opinião por Basilio Jafet

Diretor do Grupo Jafet, é vice-presidente de relações institucionais do Secovi-SP