Como se fossem poucos os desafios ultimamente lançados às democracias, com as novas e audaciosas estratégias de corrosão da legitimidade das suas instituições, o ano que ora se encerra nos trouxe, na forma de uma pandemia, recados que costumamos imprudentemente esquecer nas horas ditas normais. O processo civilizatório avança constantemente, mas aos saltos. Vivemos mais e melhor, mas há intolerável desigualdade no gozo desse tempo adicional de vida. E tudo isso sem falar que o relativo “recuo das barreiras naturais” possibilitado por aquele avanço não se faz sem riscos permanentes. Somos seres precários, cujos impulsos de conquista convém temperar para manter a harmonia com o mundo natural e não alimentar a ilusão de domínio absoluto sobre ele.
O vírus que saltou a barreira entre espécies num remoto mercado teve o condão de nos lembrar que a máquina do mundo não funciona em moto contínuo e nem sempre estamos preparados para responder do modo mais racional ao inesperado, pelo menos não num primeiro momento. E muitos não responderão racionalmente em momento algum.
Não faltou quem, no início do grande drama, apostasse na ideia de um “vírus inventado” para propiciar o fortalecimento dos mecanismos societais encarregados de vigiar e punir. Uma ideia que, apregoada em setores progressistas, encontraria terreno já intensamente lavrado pelo moderno negacionismo científico de marca ultraconservadora. Não por acaso os negacionistas propriamente ditos passaram a repetir à exaustão a fábula do vírus desenhado em laboratório chinês, assim como, antes, haviam se atrevido a afirmações destrambelhadas, como a de que vacinas infantis são perigosas a ponto de levarem ao autismo.
Tal absurdo, aliás, propalado há alguns anos por Donald Trump em pessoa, leva-nos ao ponto em que se cruzam, hoje, os ataques simultâneos à ciência e à democracia. É bem verdade que tais ataques não são monopólio da extrema direita contemporânea, basta mencionar que, em episódio grotesco há quase cem anos, a “epistemologia” marxista-leninista reinante na antiga URSS dividia as ciências em “burguesas” ou “proletárias”, de acordo com os desígnios do ditador ou prepostos seus na ciência oficial. Trofim Lysenko, por exemplo, teve seu nome para sempre associado à manipulação política da genética e ao fracasso da agricultura soviética, um fracasso que moldaria profundamente toda aquela sociedade e os impasses que jamais superou.
O fato é que hoje as ameaças mais evidentes carregam um sinal oposto. Os problemas nascem, ironicamente, de uma mutação genética no campo conservador. Saiu de cena, ao menos em boa medida e em muitos contextos nacionais, o conservadorismo voltado para a preservação das instituições e para hipóteses de mudanças lentas e controladas na estrutura social. Em seu lugar, ameaçadoramente autoritário, surge o conservadorismo com pretensões revolucionárias, se é que vale a expressão paradoxal. Um conservadorismo em busca da uniformidade (étnica, religiosa, cultural) que teria sido perdida na vida moderna, intrinsecamente cosmopolita, e deveria ser reencontrada num passado imaginário e inventado dos pés à cabeça.
Na sua versão clássica, o pensamento conservador é índice das complexidades do mundo real. O tipo de abordagem que em geral propõe permite o debate produtivo com as mais diversas tradições, incluídos o marxismo e o socialismo “evolucionários”, para os quais a revolução há muito deixou de ser uma irrupção violenta ou um fetiche ideológico a que todo o resto deve estar subordinado. Também dessa ponta do espectro se propõem mudanças “moleculares”, certamente em direções novas e diferentes, e tais mudanças, sendo pela própria natureza objeto de disputa ou de negociação, envolvem a participação consciente dos cidadãos e decidem-se no terreno da política como mútua persuasão.
O conservadorismo revolucionário, porém, é inerentemente subversivo. As instituições e as interações sociais devem ser dobradas em sentido autoritário e, se preciso, dilapidadas. Há um pesado elemento ideológico nele envolvido, a saber, a difusão massiva de meias-verdades ou mentiras consumadas. Um elemento, portanto, com amplas implicações “cognitivas”, a disseminar a irracionalidade. Inaugurando a noite em que todos os gatos são pardos, a irrazão é que permite a construção de um consenso passivo em torno de práticas e políticas fortemente regressivas. Não há nenhuma inocência na estratégia que promove a “pós-verdade” nem se trata propriamente de diversionismo para encobrir assuntos mais sérios.
Esse conjunto de problemas, de dimensões mundiais, também nos afeta em cheio e será um legado tremendo para o ano próximo. Nesse sentido, 2020 é mais um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso. Só que agora nosso país, muitas vezes desanimadoramente lento em curar suas feridas, não tem tempo a perder. Homens e mulheres de bem, só com as armas da política, terão de encontrar rapidamente outro caminho mais razoável.
TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL