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Opinião|O que mudou?

Por enquanto, as contradições da nossa política externa estão longe de nossas fronteiras. O problema é até quando. E quanto elas podem nos custar com sinais e decisões equivocados

Por Sérgio Paulo Muniz Costa

Que o posicionamento do Brasil no cenário mundial se afastou da sua consagrada política externa não há dúvida, por mais que o Itamaraty negue e tente colocar as declarações presidenciais e os estranhos alinhamentos internacionais como caudatários da mesma diplomacia em que pontificaram Rio Branco, Oswaldo Aranha e Afonso Arinos.

Hoje, o Brasil deixa de condenar Estados e organizações que violam os direitos humanos, promovem a guerra, intentam contra a existência soberana de outros países e apoiam o terrorismo. Seria ruim se fosse um abstencionismo deliberado, mas é péssimo quando expressão de voluntarismo internacional apartado da estatura político-estratégica do País.

Longe de ser mera manifestação da vontade de um governo em exercício, essa postura tem sua origem na política externa independente, concebida por intelectuais, principalmente os reunidos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) em meados dos anos 1950. Ingênua, por desconsiderar a interdependência mundial, injusta por depreciar os grandes nomes de nossa diplomacia e aética ao nivelar a democracia ocidental ao totalitarismo soviético, essa política logo seria confrontada pela dura realidade internacional na crise dos mísseis de 1962.

Não obstante o seu irrealismo, a política externa dita independente sobreviveu para tomar nova forma, em 2009, nos Bric. Em 50 anos, saltamos para trás. Do tiers-mondisme parisiense adaptado à paisagem cultural brasileira para romper com os “alinhamentos automáticos” da guerra fria, ao invés de explorarmos as oportunidades de seu término, enredamo-nos em uma aliança indisfarçavelmente antiocidental e antiamericana. Optamos pelo atraso e pela pirraça.

Como não poderia deixar de acontecer, essa política inspirou uma perspectiva na qual as ações dos Estados Unidos, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), da União Europeia e, last but not least, de Israel são condenáveis e quase todas condenadas.

Já a invasão da Ucrânia não pode ser condenada, porque houve uma invasão do Iraque. Como se, independentemente do erro histórico dos Estados Unidos, pudessem ser comparadas situações tão radicalmente diferentes, a começar pelos respectivos regimes e governos. Como se um erro justificasse outro. Como se o termo invasão por si só resolvesse as questões morais que a História julga. Se, em 1936, a Renânia tivesse sido invadida (pelos franceses), ela não teria sido ocupada (pelos nazistas) e um certo Adolfo teria encerrado sua carreira assassina.

Também segundo esse viés, a chacina do dia 7 de outubro em Israel se diluiu no clamor de um genocídio em Gaza apoiado na equivalência absurda entre a operação militar planejada, executada e exibida para matar, estuprar, sequestrar e aterrorizar civis com outra operação militar conduzida contra combatentes entrincheirados em área densamente povoada. Algo como igualar a ação das tropas alemãs na supressão do Gueto de Varsóvia com a dos aliados no Dia D que custou as vidas de 60 mil franceses colhidos por bombardeios, canhoneios e combates ferozes.

Essa é a suprema contradição da forma de pensar que permeia nossa política externa. Sugere que os dois campos em confronto no cenário mundial são exatamente iguais, pelos erros que cometem, e nenhum deles merece apoio. O que esse simplismo reducionista esquece é que nas democracias existe uma prestação de contas, na imprensa, na política e na academia, que denuncia, critica e corrige os erros, ao passo que nos sistemas autoritários e totalitários simplesmente não há erros. Não se julga um sistema político pelos seus erros, mas pela sua capacidade de reconhecê-los e aprender com eles.

Por enquanto, as contradições da nossa política externa estão longe de nossas fronteiras. O problema é até quando. E quanto elas podem nos custar com sinais e decisões equivocados.

Em 1962, o chanceler Afonso Arinos deixou claro que o Brasil não era neutro, que fazia parte do sistema de defesa interamericano e que não estava em disponibilidade ideológica. Em 23 de outubro, o Brasil votou a favor da proposta norte-americana apresentada à Organização dos Estados Americanos (OEA), baseada no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), para uma quarentena a Cuba que impedisse a instalação de mais mísseis atômicos apontados para os Estados Unidos.

Quase 40 anos depois, na manhã de 11 de setembro de 2001, durante a reunião da OEA em Lima para aprovar a Carta Democrática das Américas, o chefe da representação do Brasil, embaixador Valter Pecly, invocou o Tiar como resposta ao ataque sofrido pelo aliado. A aprovação da proposta por aclamação mostrou a disposição dos países do hemisfério em repudiar a agressão e não permitir que seus territórios pudessem ser usados como base de ataques a outros países do continente.

O que mudou?

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HISTORIADOR, FOI DELEGADO DO BRASIL NA JUNTA INTERAMERICANA DE DEFESA, ÓRGÃO DE ASSESSORIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) PARA ASSUNTOS DE SEGURANÇA HEMISFÉRICA

Opinião por Sérgio Paulo Muniz Costa

Historiador, foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, órgão de assessoria da Organização dos Estados Americanos (OEA) para assuntos de segurança hemisférica