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Opinião | O que o PCC nos ensinou sobre segurança pública

Para frear a tragédia urbana, parece-nos urgente uma nova política, que rompa o ciclo da repressão e do encarceramento seletivo.

Por Joel Zito Araujo, Gustavo Mello e Gabriel Feltran

Ao longo dos últimos dois anos, mergulhamos em um mundo que não é parte de nossa bolha, ao trabalharmos na minissérie PCC: Poder Secreto, para a HBO Max. Foi um trabalho minucioso de pesquisa, investigação e muitas entrevistas. A série estreou na plataforma de streaming e se tornou rapidamente o conteúdo mais assistido no Brasil e o segundo mais assistido na América Latina.

O sucesso não nos parece trivial. Surgido da revolta de alguns presos contra “as opressões do sistema”, o Primeiro Comando da Capital (PCC) atualmente faz negócios bilionários em toda a América do Sul e também na Europa, na África e no Oriente Médio. O PCC é, também por isso, um dos fenômenos brasileiros mais retratados pela imprensa. A cada semana há notícias de novos “líderes” presos, transferidos, por vezes assassinados. Mesmo com tanta cobertura, o modo de funcionamento do “comando” – uma fraternidade secreta – permanecia incompreendido pelo grande público.

Prestes a completar 30 anos de existência, a principal facção brasileira é finalmente retratada a partir de um ângulo interno. Nesta jornada de produção da minissérie documental, conversamos com homens e mulheres ex-integrantes da facção, nas cadeias e nas periferias urbanas, mas também com famílias atravessadas pelo mundo do crime. Ouvimos, ainda, promotores, juízes, ex-secretários de Segurança, além de policiais que combatem a facção cotidianamente. Todos esses personagens são protagonistas desta história e há décadas convivem com a guerra urbana.

Com cada um deles tivemos importantes aprendizados. O principal é que o modelo de segurança centrado na ostensividade policial e no encarceramento em massa fortalece o crime. Esse modelo joga nas cadeias – ou seja, nos braços da facção – centenas de milhares de operadores baixos dos mercados criminais, em sua maioria jovens negros periféricos.

Implementado sem uma justiça penal eficiente, esse modelo não apenas gera parcas possibilidades de ressocialização dos presos, como se constitui em parte do problema que queria solucionar, aumentando o exército faccional. Soma-se a isso a falta de regulamentação dos mercados ilegais de drogas – consumida indistintamente por todas as classes sociais –, que gera lucros exorbitantes e níveis altíssimos de violência, cimentando nossas desigualdades social e racial. Esses pilares de nossas políticas são fundamentos não do combate, mas do poder do PCC.

O que os entrevistados de norte a sul da metrópole nos revelaram sobre a atuação do PCC em São Paulo? Que a facção entregou justiça extralegal e proteção informal para as pessoas dessas comunidades, pacificando-as pelo esclarecimento das mortes que o Estado não investigava, pela resolução de crimes que os governos não resolviam. Além disso, nossa pesquisa mostrou que o PCC obteve legitimidade fazendo o que ali se considera que é “certo, justo e correto” no cotidiano, além de regular estritamente o uso de armas e, sobretudo, o funcionamento dos mercados ilegais, hoje transnacionais.

O resultado de pacificação das “quebradas” paulistas foi alcançado com guerras violentas; e essas guerras, é importante dizer, ainda ocorrem em muitas partes do Brasil por onde a facção se expande e se fortalece. O PCC é, e não deixará de ser, uma organização de criminosos que têm compromisso com o crime, como reza o seu estatuto. A pergunta que fica, no entanto, é a seguinte: se tudo isso que o PCC fez nas periferias e cadeias fosse feito pelo Estado, e não pelo crime, qual seria o impacto no modelo de policiamento ostensivo e segurança pública? As forças estatais de repressão continuariam usando viaturas como câmaras de gás improvisadas? A sociedade aceitaria exterminadores e torturadores travestidos de profissionais da segurança? Ou teríamos uma polícia majoritariamente respeitada e apoiada por cidadãs e cidadãos, inclusive os moradores das periferias urbanas?

Há 30 anos, o Estado de São Paulo escolheu um modelo de políticas de segurança centrado na ostensividade e no encarceramento seletivos. Orlando Mota Júnior, o Macarrão, um dos mais importantes idealizadores do PCC e braço direito de Marcola, nos confirmou que “a principal força da facção é o sistema carcerário paulista”, que se tornou referência para outros Estados do País.

Para frear a tragédia urbana pela qual somos todos responsáveis, parece-nos urgente uma nova política pública de segurança, que rompa o ciclo da repressão e do encarceramento seletivo. Onde a segurança dá certo, as ênfases são na investigação e na prevenção inteligente de ações criminais, com regulação estrita de armas de fogo e mercados ilegais. Nada disso funciona sem justiça social e racial. Como dizia um rap importantíssimo para as periferias de São Paulo, quando elas viviam uma guerra sangrenta no final dos anos 1990: “Procure a sua, a minha eu vou atrás, até mais, da fórmula mágica da paz”.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, DIRETOR E PRODUTOR DA SÉRIE ‘PCC: PODER SECRETO’ E AUTOR DO LIVRO ‘IRMÃOS, UMA HISTÓRIA DO PCC’ (CIA. DAS LETRAS)

Opinião por Joel Zito Araujo
Gustavo Mello
Gabriel Feltran