A Unicamp concedeu, no dia 6 de março, o título de doutor honoris causa ao grupo Racionais MC’s. A láurea é um sinal das atuais relações de forças políticas e culturais na Universidade. Há pouco tempo, a Instituição revogou o título atribuído em 1973 a Jarbas Passarinho, alegando ter sido o militar, então ministro da Educação, um defensor da ditadura instalada no Brasil em 1964. O reconhecimento público deve se submeter à prova do tempo, mas ele conta, inicialmente, com cerimônias que investem decisões colegiadas de uma aura sagrada, projetando um caráter duradouro a um consenso momentâneo.
Segundo nota do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), as razões para a homenagem são a luta do grupo contra o racismo e a contribuição de seus membros à formação da consciência negra. Menciona-se, ainda, a inclusão do álbum Sobrevivendo no Inferno na lista de obras do vestibular da universidade, saudada como iniciativa convergente com a adoção das cotas raciais. Mas a promoção da “diversidade”, normalmente invocada nesses casos, foi contrariada por uma outra decisão da instituição: no ano em que o álbum dos Racionais entrou na lista, incluiu-se, também, A cabra vadia, de Nelson Rodrigues, obra logo depois excluída. Como se sabe, o escritor, reconhecido como conservador, tripudiava, em suas crônicas, sobre as crenças progressistas.
A justificativa para a concessão do título subordinou o valor estético da obra a uma suposta finalidade emancipatória. Em geral, antropólogos e sociólogos manifestam um interesse pragmático pela arte. Ela confere utilidade à caixa de ferramentas com a qual compreendem a cultura. Para usar a imagem criada por Wittgenstein, a obra artística torna-se uma escada para o andar de cima (o plano dos conceitos). Uma vez ali, ela é abandonada em proveito do que se alcançou. Resulta disso uma visão acanhada da arte, que se impôs na universidade.
O rap se contrapôs ao cânone cultural e dialogou, nas décadas de 1980 e 1990, com fenômenos característicos das periferias. A ascensão dos evangélicos no campo religioso e o recrudescimento de um cotidiano violento deixaram marcas em suas letras. Mas, além disso, haveria nelas alguma relevância estética? Para Harold Bloom, ambivalência moral, estranheza narrativa, luta agonística e originalidade cognitiva são termos que permitem avaliar o que torna uma obra canônica e, sobretudo, apreciá-la. São valores presentes em uma canção específica dos Racionais, Tô ouvindo alguém me chamar.
Refém da criminalidade, o protagonista realiza um périplo urbano, expondo o caos individual e coletivo: onipresença da morte, amizades traiçoeiras, colapso da educação pública e prevalência do interesse argentário. O enredo é conhecido e explicaria a situação de vulnerabilidade dos jovens da periferia. Desamparados pelo Estado e privados de um núcleo familiar estável, tornam-se alvos fáceis das promessas de enriquecimento ilícito.
À medida que narra sua luta contra o caos social, o narrador oferece um testemunho das consequências do crime. O modo como o rapper pronuncia as palavras, o choque das rimas, os estampidos das armas de fogo, o choro das crianças e o sinal do monitor cardíaco de uma UTI conspiram para a sua missão evangelizadora e constituem o lado épico de sua verdade. Um pouco antes do sinal de assistolia, que indica a parada cardíaca, o “herói” promete mudar de vida, caso supere aquela situação. Porém, não há mais tempo para a redenção. O final da canção, ao sugerir sua morte, alerta os ouvintes para a urgência da decisão ética.
A canção não faz apologia do crime ou vitimiza a trajetória da personagem. Os primeiros acordes são tensos, seguidos dos sinais dos batimentos cardíacos de um paciente na UTI. Eles dão ritmo à canção e formam uma espécie de baixo contínuo ao longo dela. Pouco a pouco, percebemos que o narrador, alvejado por tiros em uma emboscada, encontra-se em um leito hospitalar, onde, entre a vida e a morte, recorda alguns momentos decisivos de sua existência: o parceiro que fora o mandante da tocaia; o irmão distante, cujo sonho era ser advogado e que, recentemente, se tornou pai; o assassinato a sangue frio de um ladrão de mansões, que distribuía brinquedos às crianças da periferia; a morte de um jovem de 16 anos durante um assalto.
O instinto de sobrevivência e o ritmo do poema estão presentes na batida sincopada e nos sinais sonoros mencionados. Dissonância e ruídos contribuem para a forma artística. É a organização desses elementos que faz da canção um desafio à inteligência e à emoção. Questionado por uma aluna, na aula magna de 2022, sobre o racismo na universidade, Ice Blue aconselhou dedicação máxima à vida acadêmica. A resposta afirmava tanto a importância dos estudos para essa jovem como o compromisso do rap com a excelência, naquele sentido que para gregos, romanos e cristãos eram, respectivamente, areté, virtus e agápē.