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Opinião | O silêncio das ruas de São Paulo e os demônios do sectarismo

No passado, já responsabilizamos políticos pelos efeitos incendiários de suas palavras e de seus silêncios. Por coerência, deveríamos fazer o mesmo agora

Por Clarita Costa Maia

A guerra entre Hamas e Israel segue em curso e a continuidade do envolvimento das milícias armadas pelo regime iraniano intensificou as hostilidades, expandindo o teatro de operações. Apesar da escalada do conflito, um silêncio intrigante tomou conta das ruas de São Paulo. As manifestações contra o Estado de Israel, frequentemente associadas ao apoio ao Hamas, cessaram de forma inesperada.

Esse fenômeno parece estar diretamente ligado à corrida eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, onde nada acontece sem um cálculo estratégico. Na disputa pela conquista dos corações e mentes dos paulistanos, foram testadas diversas abordagens: desde o estímulo ideológico envolvendo temas de política externa, que acirram uma guerra cultural contra evangélicos e apoiadores de Israel, até a suspensão das manifestações de rua, provavelmente para reduzir a rejeição a candidatos.

Nesse cenário, o aumento do antissemitismo em São Paulo foi desprezado, um dano colateral na disputa. Discursos inflamatórios e estereotipizadores, que atribuem aos judeus do mundo, inclusive brasileiros, a responsabilidade por supostos erros de um Estado estrangeiro, foram permitidos, juntamente com a culpabilização das próprias vítimas pelo antissemitismo que enfrentam.

As lideranças dessas manifestações demonstraram pouca ou nenhuma cautela em limitar as críticas ao campo político. Pesquisas em redes sociais mostram que, após críticas ao Estado de Israel por líderes, sem uma condenação assertiva ao antissemitismo, há um aumento expressivo de manifestações racistas contra judeus.

No passado, já responsabilizamos políticos pelos efeitos incendiários de suas palavras e de seus silêncios. Por coerência, deveríamos fazer o mesmo agora.

Os Demônios, livro de Fiodor Dostoievski, oferece curiosas reflexões sobre esse cenário. Trata-se de uma obra perturbadora, a começar pelo seu título. Quando foi lançada, causou desconforto por expor o radicalismo, a violência e o fanatismo das ideologias revolucionárias. Séculos depois, continua relevante e incômoda, apesar das inúmeras lições que poderiam ter sido apreendidas sobre os perigos das “boas ideologias”, em nome de “boas causas”, que, frequentemente, são instrumentos para o avanço de agendas ocultas, quando não pessoais.

Joseph Frank, biógrafo de Dostoievski, narra a inspiração para a obra: um jovem chamado Nietchaiev, apoiado por revolucionários mais velhos, foi responsável pelo assassinato de seu companheiro Ivanov, que se opunha ao seu desejo de poder ditatorial.

No editorial intitulado Discursos Inflamados de Bakunin, o jornalista Katkov acusou o líder anarquista de contribuir para a ascensão de Nietchaiev, atribuindo-lhe responsabilidade moral pelo estado caótico e violento da juventude russa, marcada pelo aumento do terrorismo.

Dostoievski, no entanto, considerava que a culpa por aquele estado de coisas era de toda a geração de revolucionários de 1840, à qual ele próprio pertencia. Realizava, com isso, um “mea-culpa” raro entre figuras populares.

Ao ler Os Demônios, é comum tentar identificar quem Dostoievski considerava os verdadeiros protagonistas da obra. Embora o livro não forneça uma resposta clara, sugere que esses “demônios” seriam as próprias ideologias sectárias que capturam os corações da juventude, enquanto as gerações anteriores, que deveriam guiá-los à pacificação social, permanecem coniventes com atos extremistas. Essas ideologias não se limitam a palavras, pois, no limite, levam à morte e erodem os direitos das minorias que atropelam.

Na época de Dostoievski, as divergências políticas não tinham canais institucionais para serem expressas. Hoje, em democracias sólidas como o Brasil, eles existem. Nossa Constituição defende a existência de um pluralismo ideológico razoável, capaz de acomodar os conflitos de forma pacífica. Para tanto, todas as minorias devem ser protegidas pelo Estado e por aqueles que aspiram a representá-lo, incluindo a minoria judaica nacional.

A crescente violência política contra os judeus, muitas vezes liderada por jovens aspirantes à vida pública, reflete vícios antigos. Em programas de formação de líderes, nas melhores faculdades do mundo, a ênfase está na criação de líderes moderados, capazes de dialogar e promover a paz social. Esses são os líderes de que precisamos, não os que repetem o catecismo revolucionário da intolerância e da violência.

Karl Marx teria dito que Mikhail Bakunin “nada aprendeu e nada esqueceu”. Talvez também as nossas lideranças políticas que, curiosamente, pregam tanto quanto combatem a apolítica, a negação da política. A persistência de ideias ultrapassadas e violentas, que repetem erros sem oferecer soluções criativas, construtivas e respeitosas dos direitos humanos de todos os envolvidos, mostra que certas ideologias e seus mestres, aprisionados no passado, não são a melhor resposta para o futuro.

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DOUTORA EM DIREITO PELA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA SUÍÇA DE DIREITO INTERNACIONAL

Opinião por Clarita Costa Maia

Doutora em Direito pela USP, é membro da Academia Suíça de Direito Internacional