A designação de audiência pública para o dia 28 de março, sobre os temas 533 e 987 da repercussão geral do Supremo Tribunal Federal (STF), indica que a Corte deve se pronunciar ainda este ano sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014).
O dispositivo estabelece, como regra geral, que provedores de aplicações da internet só podem ser responsabilizados pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros (como os seus usuários) se deixarem de cumprir ordem judicial de indisponibilização do respectivo material.
Na prática, o Supremo deverá decidir se, além da hipótese (já contemplada pelo Marco Civil da Internet) de divulgação não autorizada de materiais contendo cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado, os provedores têm o dever de indisponibilizar outros tipos de conteúdo reputados ilícitos, independentemente de ordem judicial – ao receberem notificação extrajudicial, por exemplo.
Os impactos de uma eventual mudança no regime de responsabilidade estabelecido pelo Marco Civil da Internet seriam enormes não apenas para provedores de redes sociais, e-marketplaces e afins, como também para a coletividade de usuários da internet. Além de todos os aspectos jurídicos já extensamente abordados nos autos, há dois pontos, de certo modo, paradoxais na discussão sobre a (in)constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
O primeiro consiste na possibilidade de o Poder Judiciário vir a julgar inconstitucional uma norma que define ser ele próprio, o Poder Judiciário, responsável por julgar, caso a caso, se determinado conteúdo divulgado na internet deve ou não ser removido segundo uma ponderação entre direitos constitucionais. No fim das contas, o que o artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece é que cabe ao Poder Judiciário analisar e decidir, em concreto, se um provedor deve ou não tornar indisponível determinado conteúdo divulgado na internet. Declarar a inconstitucionalidade dessa norma seria reconhecer que, ao criar o artigo 19 do Marco Civil da Internet, o legislador não ponderou adequadamente os direitos assegurados pela Constituição por ter delegado ao Poder Judiciário a ponderação entre direitos assegurados pela Constituição.
O segundo ponto diz respeito à atitude que o Poder Judiciário e a sociedade esperam dos provedores de aplicações da internet quanto à remoção de conteúdo de terceiros. O artigo 19 do Marco Civil da Internet não proíbe provedores de aplicações da internet de removerem conteúdo gerado por seus usuários, sem ordem judicial, de acordo com o contrato que rege o serviço. Frequentemente, porém, provedores são demandados por seus usuários pelo fato de agirem dessa forma, isto é, por removerem, sem ordem judicial, conteúdo que julgam não respeitar o contrato (inclusive por violar a lei). E, não raro, esses provedores são condenados a restabelecerem o conteúdo e, ainda, a pagarem indenização aos respectivos usuários, sob o argumento de que sua conduta, ao removerem proativamente material considerado ilícito, configuraria censura.
Neste cenário, os provedores acabam por se tornar alvo de questionamentos, em juízo e perante a opinião pública, tanto por fazerem algo (removerem conteúdo sem ordem judicial) como por fazerem o oposto disso (não removerem conteúdo sem ordem judicial).
O julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet pode afastar ou confirmar esses paradoxos. O que menos se pode desejar é que algum casuísmo induza à alteração de uma norma concebida mediante amplo e extenso debate, em vigor há menos de dez anos, de forma a impactar a liberdade de uma imensa coletividade de provedores e pessoas que fazem uso lícito da internet, em vez de atingir especificamente aqueles que optam por violar a lei.
Mudar o regime de responsabilização dos provedores de aplicações da internet significaria conduzir essas empresas a uma atitude de maior restrição ao conteúdo gerado pelos usuários, como forma de mitigar o risco de arcarem com indenizações. Os impactos não ficariam restritos, pois, a provedores que não se preocupam com assegurar um ambiente virtual de respeito à lei, tampouco a usuários que se valem da internet para cometer crimes. Também aqueles que utilizam a internet para fins lícitos ficariam expostos a maior grau de restrição. A aparente solução para situações pontuais tem o potencial de se revelar, assim, causa de males bem mais severos para o regime de proteção dos direitos fundamentais.
“Este é um julgamento sobre o direito à palavra e a liberdade de expressá-la. Sem verbo, há o silêncio humano. Às vezes desumano. Por isso, a Constituição da República e todos os textos declaratórios de direitos fundamentais, ou de direitos humanos, garantem como núcleo duro e essencial da vivência humana a comunicação, que se faz essencialmente pela palavra.” Essas palavras, consignadas pelo Supremo em outra ocasião (Adin 4.815), não merecem ser silenciadas no julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
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ADVOGADO